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O trabalho liberta – proclama em alemão o portão de ferro do campo de extermínio nazista de Auschwitz, em território polonês. A sentença é intrinsecamente totalitária: trabalho escravo não liberta. O que nos torna efetivamente livres é a liberdade, este conjunto de presunções, sensações e certezas de que temos o direito de escolher em todas as esferas e dimensões – espacial, temporal, física, jurídica, psicológica e espiritual.

A tocante cerimônia da última terça-feira para rememorar os 70 anos da desativação da mais famosa fábrica de horrores dos últimos 500 anos talvez seja a última que contará com a presença de sobreviventes. A efeméride do 80.º aniversário (em 2025) dificilmente terá testemunhas e testemunhos vivos.

Não apenas por isso Auschwitz ganhou relevância no noticiário destinado a uma humanidade cada vez mais distraída e desnorteada. Auschwitz reapareceu empurrada pelo sangue derramado nos massacres de Paris.

Auschwitz não concerne apenas aos judeus; nas suas câmaras de gás foram exterminados ciganos, eslavos, católicos, protestantes, comunistas, anarquistas e homossexuais. O objetivo da cúpula nazista era a Solução Final da Questão Judaica como primeiro passo para implantar uma Europa unificada pelo terror totalitário. Nem todos os sobreviventes que compareceram à cerimonia em Auschwitz vieram de Israel; alguns estão nas Américas (Brasil inclusive), África do Sul, Austrália.

Também as chacinas de Paris não concernem apenas aos jornalistas-desenhistas do Charlie Hebdo, aos policiais que cuidavam da sua segurança ou aos judeus religiosos que estavam no empório kosher na véspera do descanso sabático. O equívoco de sepultá-los no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, não dá o direito de remeter aquelas brutalidades para o remoto e absurdo Oriente Médio. Havia dois judeus na redação do semanário (o desenhista George Wolinsky e a psicanalista Elsa Chayat), enterrados, como os companheiros, na França laica, democrática, que foi às ruas solidária com os 17 compatriotas assassinados e para manifestar-se contra a intolerância religiosa.

O périplo ganhou inesperada escala e proximidade – Buenos Aires – com a morte do promotor Alberto Nisman, que acusava formalmente a presidente Cristina Kirchner e o seu chanceler, Hector Timerman, de negociar com o governo iraniano ações que culminariam com a atenuação das penas e castigos dos responsáveis pela explosão do carro-bomba em frente ao prédio da Associação Mutual Israelita Argentina, que matou 85 cidadãos argentinos.

A chacina de 1994 – perpetrada, segundo sentença da Justiça argentina, por agentes do Hezbollah e da Guarda Revolucionária iraniana – visava a segunda maior comunidade judaica das Américas. A fuga para Israel de Damian Pachter (o jornalista que primeiro anunciou o assassinato de Alberto Nisman e, desde então, seguido por agentes e ameaçado de morte), não deve nos transferir para outras paragens. Com dupla nacionalidade e apenas a roupa do corpo, fez uma escolha pragmática e imediatista.

Israel não deve ser o único refúgio para os judeus perseguidos e injustiçados do resto do mundo. A atabalhoada e patética atuação da presidente Cristina Kirchner, ora apontando para um suicídio, ora para assassinato nos dias seguintes à descoberta do corpo de Nisman, criou profundo mal-estar na comunidade judaica. A sábia decisão de enterrar o promotor em lugar de honra do cemitério, perto do monumento em homenagem às 85 vítimas do atentado contra a Amia e não na ala dos suicidas, evita que uma questão forense de capital importância seja decidida apressadamente no âmbito religioso-funerário.

O que agora começa a transparecer é o dramático e inexplicável atraso das forças políticas portenhas – sobretudo o ambíguo peronismo – em extirpar todos as ramificações e ramais deixados pela ditadura militar.

Anestesiados pela folia que se aproxima e por mazelas que proliferam, esquecemos com frequência que Auschwitz ressuscita cada vez que vacila a democracia.

Alberto Dines é jornalista.

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