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Edmund Wilson ainda cita o francês Charles Fourier e o britânico (galês) Robert Owen, piedosos e de origens modestas, inconformados com o degradante tratamento dos trabalhadores e o estado de pobreza do povo, agravados pelo desemprego em massa causado pelo aperfeiçoamento das máquinas. Ambos propunham a criação de sociedades limitadas e independentes. Fourier não exigia igualdade, mas sufrágio universal, com idêntica educação para ricos e pobres. Na distribuição dos dividendos, os capitalistas perceberiam 4/12, os trabalhadores 5/12 e os talentosos 3/12! Morreu em 1837, desapontado porque em 10 anos "nenhum benfeitor apareceu". Owen, que impunha igualdade absoluta, organizou sua comunidade em New Lanark, Escócia, ao assumir o controle de duas tecelagens de algodão, onde então trabalhavam "homens e mulheres sujos, bêbados, de baixíssima confiança" com crianças de cinco a dez anos de idade, recebidas dos orfanatos. Essa comunidade durou 25 anos, percebendo os empregados altos salários, com elevados padrões de vida e de instrução. Ele atuava como um deus benévolo, porém onipotente, apontado por William Lovett, líder corporativo, como "essencialmente despótico" e de impossível trato "em termos democráticos". Robert Owen, por sua vez, considerava os capitalistas "gananciosos e nada esclarecidos". Tentou repetir, sem êxito, sua iniciativa nos Estados Unidos e na Inglaterra, falecendo em 1858. Outros movimentos socialistas houve, sempre caracterizados como grupos de voluntários e muitos dos seus líderes se apresentando como guiados por Deus, messiânicos, carismáticos, etc.

O século XIX foi marcado pelas idéias de Karl Marx e Friedrich Engels, difundidas e bem aceitas nos meios trabalhistas e mesmo por políticos e intelectuais. No conhecido Manifesto do Partido Comunista, publicado a partir de 1848, há um capítulo de total repúdio às precedentes pregações socialistas, principalmente ao "socialismo e ao comunismo crítico-utópicos", dos franceses e do britânico antes mencionados, que apareceram "no período inicial e rudimentar da luta entre o proletariado e a burguesia", sem dar importância "aos antagonismos de classe e à necessária emancipação dos trabalhadores" (ed. alemã de 1890, p.59/63). A então almejada comunidade estatal socialista-comunista nasceu pela Revolução Russa vitoriosa em outubro de 1917, sob o comando de Vladimir Ilyich Lenin, sob o nome de República Socialista Federativa Soviética da Rússia, depois União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), formalmente dominada pelos soviets (conselhos) dos operários, soldados e camponeses, ou seja, pela alegada ditadura do proletariado, com igualdade dos súditos, abolição da propriedade privada da terra e dos bens de produção.

A URSS acolheu outras efetivas ditaduras: a longa e cruel de Joseph Stalin (1928/53) e a permanente do Partido Comunista, confirmada na quarta Constituição, de 1977; conforme Boris Topornin, dirigente do Instituto de Estado e Direito da Academia de Ciências da URSS, "o Partido Comunista é uma organização social e específica como estabelece o artigo 6 da Constituição (...) é a força dirigente e orientadora da sociedade soviética e o núcleo de seu sistema político, das organizações estatais e sociais. O Partido dirige todas essas organizações" com absoluta autonomia de organização, pelo estatuto que adotar (Nueva Constitución de la URSS, Editorial Progresso, Moscou, 1980, p. 59). Fato relevante: os revolucionários vitoriosos homenagearam Thomas More com uma estátua, "por suas idéias socialistas na Utopia".

Como é sabido, a URSS começou a mudar em 1985, o que foi simbolicamente comemorado com a demolição do chamado muro de Berlim em 1989, por iniciativa popular. A mudança foi iniciada por Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista, que a seguir ocupou os mais elevados cargos no Soviet Supremo e a Presidência do país em 1990. Felizmente cessou a perigosa guerra fria, convertendo-se em amistosas as relações com os Estados Unidos e outros importantes países, sendo a Alemanha reunificada. Essa etapa de reorganização está exposta no livro de Gorbachev com aquele título, na língua russa: Perestroica, Editora Best Seller, s/d. Reconhece que há sérios problemas econômicos e sociais, sendo preciso aproveitar a diversidade criativa das pessoas, mais transparência – glasnost – e mais democracia (p. 29/37). Uma débil e breve reação foi debelada com a participação de Boris Yeltsin, sucessor eleito de Gorbachev na Presidência da República, que completou a extinção da URSS, por via constitucional convertida na Federação da Rússia, que tende a se identificar politicamente com as grandes potências capitalistas e democráticas. Também Yeltsin apresenta em livro suas idéias e narra sua participação nos acontecimentos (Minha Luta pela Rússia, Editora Record, 1994).

Sinceramente, não entendo como possa a terrível Utopia ser adotada como modelo político. Pois é o que pode sugerir o livro Utopia Desarmada (Companhia das Letras, 1994), do conceituado escritor mexicano Jorge G. Castañeda, formado pela norte-americana Universidade de Princeton, colunista do Los Angeles Times e da revista Newsweek. Porém, já no prefácio à edição brasileira, referindo-se à rebelião de Chiapas, no México, e a outras violentas manifestações na América Latina, o autor nega admitir a luta armada e tem como inevitável a reforma das esquerdas. Alude como mal maior ao "espectro do comunismo (...) as chamadas ‘classes perigosas’ na segunda metade do século XIX, o bolchevismo a partir de 1917, a Revolução Cubana desde 1959 (...) Uma das conseqüências da queda figurativa e literal do Muro de Berlim foi o desaparecimento desse mal maior" (p.12).

Prezando a verdadeira democracia com todas as suas garantias, destacada a liberdade individual, não posso admitir tal Utopia e suas imitações como sonhos de honestos idealistas, mas sim como tenebrosos pesadelos perturbadores dos bons sonos, porque qualquer delas sempre será uma utopia desalmada!

Fernando Andrade de Oliveira é aposentado como procurador da República e professor titular da Universidade Federal do Paraná.

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