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Apesar de eventuais afirmações em contrário, são numerosas e relevantes as diferenças entre nós, habitantes deste planeta. Pois há muitos já felizes com o que aqui são e têm, esperando a ventura infinita no céu, enquanto outros ainda aguardam o perdão divino para recuperar o paraíso perdido, certamente já devastado ou invadido por sem-terra. Alguns imaginam viver nos reinos de felicidade ociosa dos deuses mitológicos, descritos pelos poetas, ou então, seguindo místicos pregadores, aderem a sociedades sem classes, com terras de todos, iguais em tudo para viverem sob regras arbitrárias e imutáveis. Em 1516 foi publicado o livro Utopia ou O Tratado da Melhor Forma de Governo, do político e escritor inglês Sir Thomas More, que descreve fictícia república fundada numa ilha por um tal Utopus, que teria organizado o país e planejado suas 54 cidades, com igualdade entre os habitantes, mantidos costumes e leis, já então decorridos 1.760 anos. Não se sabe onde, pois a palavra latina utopia significa literalmente em lugar nenhum!

Cada cidade anualmente envia à capital, Amaurota, "três velhos com experiência em assuntos públicos", que sendo senadores deliberam sobre o que for de interesse nacional. Na zona rural, os camponeses recebem em suas casas os instrumentos para o cultivo da terra e a criação de animais, devendo cada família hospedar citadinos por dois anos, afim de instruí-los nesses trabalhos. Todos os anos 30 famílias elegem um magistrado, sábio de idade madura; dez deles escolhem outros magistrados e 200 destes elegem por voto secreto um príncipe vitalício, dentre quatro cidadãos designados pelo povo. Quem discutir assuntos de interesse público fora das assembléias estará sujeito à pena capital (de morte)! Além da agricultura, cada utopiano aprende um ofício do seu agrado, sobretudo o da tecelagem da lã e do linho, ou de pedreiro, ferreiro e carpinteiro. As famílias confeccionam suas roupas, segundo o modelo adotado há séculos. As 24 horas são assim divididas: seis de trabalho, sendo três antes do meio-dia, com duas horas de repouso e mais três horas de trabalho antes da refeição noturna. Às 20 horas todos se deitam para oito horas de sono. O tempo vago é aproveitado para estudo, exercício do ofício ou mesmo de lazer. Nas horas certas, as famílias são convocadas por toques de clarim para almoço e jantar em salões com mesas em que há lugares de honra para as autoridades. Mulheres não casam antes dos 22 anos e homens dos 26, sendo vitalício o casamento e o adultério punido com servidão; na reincidência, com a morte. Há maior produção com menor trabalho, dizem, porque nos demais países muitos são os inativos: quase todas as mulheres, os padres, os ricos, os latifundiários, os nobres e seus lacaios, mendigos saudáveis, etc.

Os centros de abastecimento fornecem gratuitamente legumes, frutas, peixes e as partes comestíveis de animais, mortos e limpos por escravos, que executam outras tarefas "mais sujas e fatigantes." Os magistrados permitem visitas a outras cidades, viajando os grupos em carroças com escravos públicos, carta do prefeito e data para o retorno. Quem for encontrado fora da sua província sem tal carta será considerado desertor e "vergonhosamente repreendido"; se reincidente, condenado a trabalhos forçados. Quando a população da ilha ultrapassa o nível conveniente, cidadãos recrutados invadem terras deixadas incultas e se os nativos rejeitam associação para produzirem juntos sob as leis de Utopia, são eles expulsos em guerra, invocando os invasores direito natural de alimentação. As reservas de ouro e prata são aplicadas no pagamento de mercenários que atuam nas guerras, bem assim para fomentar traição, morte e guerra civil entre os governantes inimigos. Os utopianos devem evitar pretextos para o ócio, com a proibição de cabarés, tavernas, casas de jogos, etc. Ficando permanentemente "expostos aos olhos de todos, cada um é obrigado a praticar seu ofício ou entregar-se a um lazer irreprochável."

Apesar da genérica e inegável desigualdade entre os seres humanos (nem os animais e vegetais são rigorosamente iguais), pessoas com certas afinidades básicas voluntariamente buscam convivência para alcançar objetivos comuns, como tem ocorrido sobretudo a partir do século 19. O escritor norte-americano Edmund Wilson, narrando as origens do socialismo (Rumo à Estação Finlândia, Companhia das Letras,1986) refere-se aos franceses Graco Babeuf, conde Saint-Simon e Etienne Cabet, castigados como críticos da Revolução de 1789, sendo o primeiro guilhotinado e Cabet exilado no Inglaterra. Babeuf fundara a Sociedade dos Iguais, com abolição da propriedade privada em uma "grande comunidade nacional de bens" e mais: a mesma educação para todos, cabendo ao governo suprir as necessidades básicas, com as refeições servidas em mesas comunitárias. Saint-Simon, "um pouco amalucado", não se distinguia dos idealistas, igualmente excêntricos e extravagantes. Condenava a liberdade individual defendida pelos liberais, porque "as partes devem subordinar-se ao todo." Mas aceitava o princípio do mérito, com os sábios exercendo o poder espiritual no conselho superior, com três matemáticos, físicos, fisiólogos, escritores, pintores e músicos. Só reputava importantes os governos dos franceses, ingleses, alemães e italianos. Após tentar suicídio, faleceu em 1825, sonhando com o livre desenvolvimento das faculdades humanas e a organização do partido dos trabalhadores. Etienne Cabet escreveu Viagem a Icária, outra utópica ilha comunista, com a abolição do direito de herança, regulamentação dos salários, educação pública, controle eugênico do casamento, jornal único, do governo, e outras restrições.

Fernando Andrade de Oliveira é aposentado como procurador da República e professor titular da Universidade Federal do Paraná.

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