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Voar, nos anos cinqüenta e sessenta, era uma experiência inesquecível. Para ser exato, não era totalmente agradável: os aviões, na maioria DC3, os Dakota da Segunda Guerra comprados como sucata, eram pequenos, abafados, não eram pressurizados e voavam baixo no meio das nuvens sacolejando, mas o glamour da viagem aérea era inexcedível. A mágica dos aviões, a azáfama bem organizada dos aeroportos e dos "campos de aviação", a mística dos tripulantes impecavelmente uniformizados a desfilar com aquele ar de superioridade de quem domina artes inacessíveis aos pobres mortais, a cruzar com passageiros com ar solene e preocupado como a ocasião exigia, compunham um quadro irresistível de aventura e de modernidade. Quando vi a série "Band of Brothers", em que os pára-quedistas seguem para o holocausto e a glória a bordo dos Dakota, imediatamente reconheci os aviões da Cruzeiro do Sul, que faziam escala em Mafra e que tinham a mesma configuração interna: bancos de metal nas laterais, com uma almofadinha e, no fundo do avião, a carga dentro de uma gaiola de tiras de lona. Já comecei a fantasiar que – quem sabe – nós, os caipiras de Rio Negro e Mafra, estivéssemos colocando nosso traseiro onde sentou um dia um herói de guerra e nem sabíamos.

Outra coisa era fascinante: os pilotos não tinham dúvidas nem hesitações. Nunca se viu um piloto com voz claudicante e estilo tatibitate; eram sempre decisivos e afirmativos naquela linguagem cifrada dos aeronautas: "Eco-Tango-Romeo chamando, câmbio! Romeo na perna do vento! Romeo na final, câmbio!"... Mas o que sempre sobrou em capacidade de tomar decisões nos ares faltou sistematicamente em terra. A aviação civil brasileira esfacelou-se por culpa pura e simples do amadorismo, do despreparo empresarial de seus dirigentes e mesmo de outras causas malcheirosas. A Vasp quebrou, a Transbrasil idem e a Varig vive uma agonia interminável que, inevitavelmente, acabará por levá-la ao chão. Quanto às empresas sobreviventes, é muito cedo para começar a romantizar a excelência de sua gestão porque são novas, com frotas modernas e pouco passivo acumulado ao longo dos anos (que é o que tem abatido implacavelmente as empresas mais antigas no mundo inteiro, mesmo as muito bem administradas); além disso, gozam de uma situação de duopólio, em que fazem virtualmente o que querem sem que os passageiros possam tugir ou mugir. "A empresa tal informa aos passageiros do vôo xyz que, devido ao aguardo de aeronave em trânsito, estima (sic) iniciar seu embarque às ...." Como diria o Zé Simão, as empresas aéreas tucanaram o atraso. Ou então, a pérola que descreve o padrão contemporâneo de serviço de bordo: "nesse trecho, serviremos barra de cereal acompanhada de cerveja, refrigerante, água mineral e suco". Ou ainda, a versão "marine" da cordialidade ensaiada: "eu não posso ajudá-lo ...senhor!" "Vá se queixar ao bispo,....senhor!" , "É a sua...senhor!"

O que está acontecendo com a aviação brasileira, que, afinal, é um serviço concedido, é inacreditável, pois um país com a extensão que tem o Brasil, com uma infra-estrutura ferroviária praticamente inexistente e rodovias semidestruídas tem naturalmente um enorme mercado potencial para o transporte aéreo, como aliás comprovam os aviões abarrotados, apesar das tarifas exorbitantemente caras em comparação com outros lugares do mundo. Se o paciente leitor quiser comprovar o que digo, basta que acesse os sites da Southwest Airlines, JetBlue e RyanAir e compare as tarifas com o que pagou pela última viagem para São Paulo, Porto Alegre ou Brasília, com padrão de serviço semelhante ou até inferior. O que vem faltando na aviação brasileira é empreendedorismo, capacidade de empreender. Voltando ao passado para exemplificar: quando a Varig, até então uma empresa regional gaúcha, começou a voar para os Estados Unidos, iria enfrentar a concorrência da maior empresa da época, a PanAm, e ter de convencer os passageiros de que deveriam correr o risco de preferi-la. Rubem Berta, presidente da empresa gaúcha, contratou Oscar Ornstein, o melhor "restaurateur" brasileiro, para preparar os cardápios, vestiu as tripulações com uniformes desenhados por estilistas italianos, esmerou-se na pontualidade e na cortesia e como resultado a Varig dominou tranqüilamente o mercado Brasil-Estados Unidos por décadas, preferida até pelos próprios americanos. Nos anos seguintes, fez o mesmo em todos os mercados europeus e asiáticos em que ingressou. Agora, às voltas com uma crise terminal, não ocorre nada melhor aos sucessores de Berta do que trocar seis vezes de diretores em dois anos, mobilizar a bancada gaúcha para que o governo a salve da bancarrota e driblar as ameaças dos bancos e credores de seqüestrarem seus aviões. E enquanto abundam as propostas mirabolantes para comprar a Varig na bacia das almas, escasseiam os empresários capazes de entender o tamanho da oportunidade que está sendo jogada fora. A sorte dos passageiros brasileiros é que, nos ares, a aviação brasileira é muito melhor do que "em solo", como eles gostam de dizer.

P.S. Esta coluna é escrita em homenagem ao amigo Antonio Stenghel Cavalcanti, o Comandante Stenghel, que, como piloto, ajudou a construir o que já foi a "nossa" Varig .

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações da UniFAE e membro da Academia Paranaense de Letras.

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