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O julgamento relacionado aos eventos de 8 de janeiro no Supremo Tribunal Federal (STF) levanta importantes questões procedimentais que merecem análise técnica sob a ótica do Direito Penal. Chamou a atenção, por exemplo, a decisão de não permitir a gravação dos depoimentos e acareações. O artigo 792 do Código de Processo Penal estabelece que "as audiências, sessões e atos processuais serão, em regra, públicos". A publicidade dos atos processuais é garantia constitucional expressa no artigo 5º, LX, da Constituição Federal.
Quando a defesa do general Braga Netto solicitou gravar a acareação com o tenente-coronel Mauro Cid, estava exercendo prerrogativa prevista no Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), que assegura o direito de "examinar em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza". Em processos de interesse público, como os do 8 de janeiro, a transparência dos procedimentos contribui para a confiança institucional no sistema judiciário. A ausência de registro audiovisual, embora possa ser justificada em casos específicos, dificulta a verificação independente da condução dos depoimentos.
O caso em questão, pela sua relevância histórica e política, demanda rigor técnico e respeito às garantias processuais. A transparência dos procedimentos e a imparcialidade judicial são pilares que sustentam a credibilidade do Poder Judiciário e a própria noção de justiça
Esse não foi o único questionamento surgido a partir da acareação entre Mauro Cid e Braga Netto. Segundo relatos dos presentes, houve momentos de silêncio e hesitação que podem impactar a avaliação da credibilidade dos depoimentos de Mauro Cid.
A delação premiada, regulamentada pela Lei 12.850/2013, exige que as declarações do colaborador sejam corroboradas por outros elementos probatórios. A jurisprudência do STF estabelece que "o acordo de colaboração não se confunde com os depoimentos prestados pelo agente colaborador. Ainda assim, o comportamento de Cid durante a acareação, especialmente nos momentos em que foi confrontado sobre a suposta entrega de dinheiro em uma caixa de vinho, pode influenciar a avaliação judicial sobre a consistência de suas declarações anteriores. É fato que as provas oriundas de sua delação não podem ser, automaticamente, anuladas, mas o comportamento hesitante do tenente-coronel pode anular os benefícios da sua delação.
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Antes disso, a condução do depoimento do tenente-coronel Mauro Cid pelo ministro Alexandre de Moraes também suscitou discussões sobre os limites da atuação judicial em um sistema acusatório. O sistema processual brasileiro, conforme consolidado pela Constituição, pressupõe a separação entre as funções de acusar e julgar. Durante o depoimento, observou-se uma postura ativa do magistrado que vai além do que tradicionalmente se espera na colheita de provas. O artigo 212 do CPP permite ao juiz complementar a inquirição para esclarecer pontos necessários, mas essa faculdade deve ser exercida com cautela para preservar a imparcialidade judicial.
As questões procedimentais levantadas não são meramente formais, podem ter potencial impacto na validade das provas e na legitimidade do processo como um todo. O STF já se manifestou sobre como "a contaminação de provas por derivação impõe a sua nulidade". Se houver questionamentos sobre a forma de obtenção da delação, isso poderia teoricamente afetar as provas dela derivadas.
Adicionalmente, o respeito às prerrogativas da defesa, como o direito de documentar os atos processuais, é elemento fundamental para garantir a paridade de armas no processo penal. O processo penal em um Estado Democrático de Direito exige não apenas resultados justos, mas também procedimentos que respeitem integralmente as garantias fundamentais. A análise técnica dos procedimentos adotados no caso do 8 de janeiro não visa deslegitimar a apuração dos fatos, mas contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de justiça.
O caso em questão, pela sua relevância histórica e política, demanda rigor técnico e respeito às garantias processuais. A transparência dos procedimentos e a imparcialidade judicial são pilares que sustentam a credibilidade do Poder Judiciário e a própria noção de justiça em uma sociedade democrática.
Jacqueline Valles é advogada criminalista, professora e Mestre em Direito Penal e sócia do escritório Valles Advogados Associados.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



