• Carregando...
 | Anthony Wallace/AFP
| Foto: Anthony Wallace/AFP

Antes de matar 50 muçulmanos que rezavam em duas mesquitas na cidade neozelandesa de Christchurch, em 15 de março, o australiano Brenton Tarrant, de 28 anos, postou um manifesto on-line de 74 páginas, intitulado The Great Replacement (A Grande Substituição). Em seu tratado, confessa que teve uma única inspiração: o terrorista norueguês Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011.

Sempre achei que Breivik era mais perigoso antes de sabermos quem era, quando o que havia eram só as fotos alteradas com Photoshop que ele postava na internet, aquelas em que parecia alto e musculoso, loiro e ariano, posando com a arma.

Breivik queria fama. Queria que seu manifesto de 1.500 páginas, feito na base do copiar/colar, fosse amplamente disseminado; queria também um palco, ou seja, seu julgamento em Oslo. Chamou a bomba que plantou na frente da sede do governo federal, em Oslo, e o massacre que perpetrou na ilha de Utoya de seu “lançamento do livro”. Disse à justiça norueguesa que tinha calculado quantas pessoas teria de matar para ser digno de leitura – e chegou a uma dúzia, embora tenha assassinado 77.

Oito anos após essa chacina, ele continua a ser lido pelo público que pretendia atingir: nos fóruns de extrema-direita da internet, o termo “dar uma de Breivik” significa comprometimento irrestrito com a causa.

Pesquisando sua vida – processo que incluiu o envio de perguntas e o recebimento das respostas por carta, direto da prisão –, descobri uma vida cheia de vergonha, fracassos, abusos e rejeições. Um menino que nunca recebeu a atenção ou o cuidado que uma criança merece; um adolescente rejeitado, que nada tinha de legal ou descolado; um homem de vinte e muitos anos que morava com a mãe e vivia para jogar videogames. Isolado e revoltado, mas com amigos recém-descobertos na dark web, decidiu como seria visto, ouvido, reconhecido e temido. Planejou seu ataque com um público em mente.

A radicalização ocorre em primeiro lugar e principalmente na internet, na qual extremistas violentos se reúnem e incitam uns aos outros

Depois que meu livro sobre Breivik foi publicado, volta e meia me perguntavam por que razão eu publicara suas palavras e métodos. O fato é que eu o achava mais perigoso como símbolo, nada tendo de inspirador quando visto com todas as suas falhas humanas: depois de preso, não só reclamou do café morno e da falta de hidratante, mas também da falta de um PlayStation 4 na cela.

Entretanto, seus seguidores ignoraram os textos críticos produzidos pelos jornalistas e foram direto para seu manifesto, que continua a repercutir com públicos novos. Christopher Hasson, tenente da Guarda Costeira dos EUA que se autointitula “nacionalista branco” e queria dar início a uma guerra de raças, se inspirou no norueguês.

O tratado de Tarrant é uma versão mais branda do manifesto de Breivik, cheio de referências a memes e piadas de internet, mas semelhante em conteúdo, estrutura e tom. Ambos publicaram seus textos na rede antes dos ataques. Porém, enquanto o norueguês planejara transmitir seu atentado ao vivo pelo YouTube, mas não conseguiu, Tarrant exibiu sua sanha terrorista em tempo real em seu perfil no Facebook.

Os dois homens combinam revolta e autopiedade; ambos se veem como vítimas e usam termos como “invasão”, “imigração em massa” e “genocídio branco” para descrever o que consideram a destruição da Europa e da raça branca. Tanto o australiano quanto o norueguês mal mencionam o próprio país, concentrando-se na Europa e nos EUA. Tarrant, inclusive, vê a população branca da Austrália e da Nova Zelândia como europeia.

E descreve como decidiu ir “para as cabeças” depois de visitar a França, em 2017, onde viu como os franceses europeus tinham sido “substituídos” por “não brancos”. Daí o título de seu manifesto.

Leia também: O massacre de Suzano foi um ato terrorista? (artigo de Lucas Teider e Edgard Rocha, publicado em 18 de março de 2019)

Leia também: O terrorismo e a luta do bem contra o mal (artigo de Alexandre Nigri, publicado em 30 de julho de 2017)

Como Breivik, Tarrant é obcecado por taxas de natalidade e afirma que a Europa está ficando mais fraca e mais velha. O primeiro queria abrir clínicas estatais onde cada mulher loira e de olhos azuis daria à luz uma dúzia de filhos; o segundo pretendia restaurar o que chama de “valores familiares tradicionais”.

Embora tenha escrito seu documento para o público da dark web, às vezes até com linguagem cifrada, tentou também criar um cenário de normalidade, citando poemas de Rudyard Kipling e se referindo a nomes de direitistas mais populares. Da mesma forma, Breivik citou inúmeras vezes nomes como Thomas Jefferson, como se fosse o herdeiro por direito de ideias há muito estabelecidas.

O principal objetivo dos dois era o mesmo: acabar com a imigração muçulmana. Tarrant queria “deportar os invasores que já vivem em nosso solo”; Breivik sugeriu que a todo islâmico deveria ser dado o direito de se converter ao cristianismo e adotar um nome cristão – e quem não obedecesse deveria ser deportado ou executado. Todos os exemplos de arte islâmica deveriam ser destruídos, incluindo as mesquitas; idiomas como árabe, persa, urdu e somali deveriam ser proibidos.

Uma das mesquitas atacadas na Nova Zelândia foi construída no terreno onde antes havia uma igreja. E, enquanto o atirador de Christchurch quis acertar apenas seus alvos, a intenção de Breivik era matar também os chamados “traidores”, os membros da elite liberal e do Partido Trabalhista, da situação, que permitiram a entrada dos estrangeiros no país.

Os dois homens mencionaram o “sacrifício próprio” em função de uma causa maior, imaginando que seriam libertados por seus seguidores, depois que uma “revolução conservadora” varresse o mundo.

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

Leia também: Terrorismo e a lei brasileira (artigo de Débora Veneral e Caroline Cordeiro, publicado em 4 de agosto de 2016)

Os psiquiatras forenses diagnosticaram Breivik com um transtorno de personalidade narcisista; Tarrant exibe traços semelhantes – e disse em seu manifesto que não só espera ser solto como receber o Prêmio Nobel da Paz. E que deveria recuperar a liberdade após 27 anos, como Nelson Mandela, depois de cumprir pena “pelo mesmo crime”.

Embora parte do manifesto de Breivik possa ser encarada como um manual para um ato de terrorismo, ele é uma convocação à ação. E Tarrant o repete, escrevendo: “Enquanto vocês esperam um sinal, seu povo espera por vocês.” Ambos se descrevem como fascistas e usam metáforas de guerra para justificar seus crimes.

Somos cúmplices desses terroristas pelo fato de escrevermos a respeito deles? A resposta é não. A radicalização ocorre em primeiro lugar e principalmente na internet, na qual extremistas violentos se reúnem e incitam uns aos outros. É ali que deveriam ser rastreados e monitorados.

Não podemos nos permitir a ignorância. Para combater o terrorismo, precisamos pesquisar como ele transforma as pessoas. Precisamos analisar e expor os pensamentos e a violência fascistas.

Gente como Breivik e Tarrant espalham mitos e conspirações fantasiados de fatos. Usam armas para serem lidos. Suas ideias vingam na escuridão, criadas para uma comunidade clandestina. Precisamos expor as ideias e as vidas desses supremacistas, pois só assim conseguiremos analisá-las adequadamente.

Asne Seierstad é a autora de “One of Us: The Story of Anders Breivik and the Massacre in Norway” e “Two Sisters: A Father, His Daughters and Their Journey Into the Syrian Jihad”.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]