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A armadilha do Programa “Crédito do Trabalhador”

O Programa “Crédito do Trabalhador” promete alívio, mas pode afundar empregados em dívidas, reduzir benefícios e comprometer o FGTS. Foto: Ricardo Stuckert / PR (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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Em março deste ano, o Governo Federal lançou o programa “Crédito do Trabalhador”, uma nova modalidade de empréstimo consignado aos trabalhadores celetistas, com promessa de taxa de juros reduzida. A linha de crédito é oferecida diretamente por meio do aplicativo da carteira de trabalho digital, garantindo o fácil acesso à operação financeira pelo empregado.

A parcela do empréstimo é descontada diretamente do contracheque até o limite de 35% do salário mensal, podendo também ser utilizados até 10% do saldo do FGTS e 100% da multa rescisória em caso de dispensa sem justa causa como garantia do empréstimo.

De acordo com dados recentemente disponibilizados pela DATAPREV e repassados ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), até o dia 01/04/2025 o programa já havia liberado R$ 2,8 bilhões em empréstimos consignados para 452.445 trabalhadores. No total, foram firmados 453.494 contratos, com parcela média de R$ 349,20 e prazo médio de 18 meses, sendo que o valor médio concedido por trabalhador foi de R$ 6.240,57.

Em teoria, o programa foi desenhado para que o crédito concedido ao trabalhador com taxa de juros reduzida seja utilizado para quitação de dívidas já existentes sujeitas a juros mais elevados, tais como empréstimos pessoais, rotativo do cartão de crédito e cheque especial.

Entretanto, a experiência prática tem revelado que, por trás do discurso de facilitação financeira, esconde-se um conjunto de armadilhas que podem agravar, em vez de solucionar, as dificuldades do assalariado.

Ao somar-se a outros descontos já autorizados em folha - como pensões alimentícias, coparticipação em convênios médicos e descontos relativos ao auxílio-alimentação -, esse novo consignado tende a reduzir drasticamente a renda líquida disponível, podendo até mesmo zerá-la, o que aprofunda a situação de vulnerabilidade do empregado. O valor da parcela é descontado inclusive sobre o pagamento das férias, reduzindo o valor disponível no período destinado à recuperação física e mental.

Observa-se também uma tendência preocupante: trabalhadores têm optado por abrir mão de benefícios fornecidos pela empresa, como planos de saúde e odontológico, a fim de reequilibrar o orçamento mensal. Com o salário líquido comprometido pelo consignado, resta pouca ou nenhuma margem para cobrir outras despesas básicas ao final do mês.

Evidentemente, a sobrecarga financeira e a redução de benefícios impactam diretamente o bem-estar e a saúde mental do trabalhador, podendo levar a quadros de ansiedade e depressão, o que, por sua vez, prejudica a produtividade. Nesses termos, o empréstimo consignado acaba se tornando um fator de risco psicossocial, nos moldes da Norma Regulamentadora n. 1 (NR-1) do Ministério do Trabalho e Emprego.

Outro ponto preocupante é o uso do FGTS como garantia. Ao permitir que até 10% do saldo da conta vinculante do FGTS e 100% da multa rescisória sejam utilizados, o programa compromete recursos que deveriam servir de amparo em situações de emergência, como desemprego, doença grave ou aquisição da casa própria.

Muitos trabalhadores tampouco se atentam a outros aspectos negativos da operação. Por exemplo, na eventual rescisão do contrato de trabalho, poderá ocorrer desconto automático do saldo devedor do empréstimo até o percentual de 35% das verbas rescisórias. Caso reste valor pendente, as parcelas do consignado continuarão sendo descontadas em vínculos empregatícios futuros.

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As empresas também têm enfrentado desafios com o programa “Crédito do Trabalhador”. O setor de Recursos Humanos passa a ter que controlar os contratos firmados pelos empregados, muitas vezes sem contar com sistemas de folha de pagamento atualizados para processar os descontos corretamente. Isso resulta em sobrecarga no departamento administrativo.

Há ainda casos em que, após os descontos de adiantamento salarial, INSS e IRPF, o saldo salarial é insuficiente para a quitação integral da parcela do empréstimo consignado.

Nessas situações, pode ocorrer o desconto parcial, obrigando o trabalhador a quitar o valor diretamente com o banco. Isso impacta não apenas a rotina do trabalhador — que muitas vezes precisa se deslocar ao banco para regularizar o pagamento, ocasionando atrasos ou faltas —, mas também gera risco de inadimplemento para a empresa, responsável pelo repasse mensal ao banco.

Em suma, o programa 'Crédito do Trabalhador' apresenta-se como potencial armadilha, uma vez que o Governo Federal não promoveu medidas eficazes de orientação aos trabalhadores, que passaram a contratar os empréstimos sem o devido planejamento financeiro. No fim, coube às empresas lidar com os impactos imediatos dessa situação.

Enquanto o Governo Federal não reavalia o programa, as empresas devem promover com urgência orientação educativa aos seus empregados, adotando medidas para conscientizar os trabalhadores sobre as implicações dessa modalidade de crédito.

José Ricardo Guertzenstein Vasconcelos é advogado associado à Abagge Advogados.

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