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A ideologia do Vale do Silício, uma mistura de capitalismo com marxismo, tem origem na obra de Shulamith Firestone.
A ideologia do Vale do Silício, uma mistura de capitalismo com marxismo, tem origem na obra de Shulamith Firestone.| Foto: Greg Bulla/Unsplash

Semana passada, publiquei um ensaio sobre Augusto del Noce na nova revista Compact. Del Noce enxergou, antes e melhor do que a maioria dos seus contemporâneos, que a grande ameaça totalitária de nossa era, em última instância, não emanava das ditaduras dos regimes ditos comunistas da União Soviética e da China, senão do desdobramento da lógica liberal do Ocidente. Em particular, Del Noce reconheceu que a revolução sexual, desde o seu começo no Ocidente, se tornaria a forma revolucionária que alcançaria a transformação de toda a ordem social, econômica e política. Como apontou, o Marquês de “Sade está tomando o lugar outrora ocupado por Rousseau e Kant na história da moral.”

Essa revolução agora está bem avançada e transforma cada aspecto de nossas vidas – especialmente hoje, por meio do rápido avanço da manipulação tecnológica dos aspectos centrais da natureza sexual e reprodutiva da humanidade. A revolução desmantelou nossa ordem social de uma maneira tão completa quanto Marx imaginara, embora, ironicamente, de uma maneira que introduziu e reforçou, em vez de abolir, a ordem econômica capitalista e individualista que muitos acreditavam definir o Ocidente, em contraposição aos seus inimigos.

Del Noce era um crítico desses desdobramentos, uma Cassandra cujos alertas foram muito neglicenciados. Mas foi uma intelectual contemporânea sua cujos argumentos, a um só tempo, refletiram e moldaram o espírito revolucionário do nosso tempo: uma feminista que celebrava o que Del Noce tentava denunciar. Essa escritora norte-americana, Shulamith Firestone, percebeu o mesmo potencial revolucionário na expansão do controle da natureza pela humanidade, e tentou casar aquilo que ela via como anseios de Marx com as possibilidades oriundas do feminismo liberatório e do progresso tecnológico. O livro de Firestone The Dialectic of Sex  (New York: Farrar, Straus and Giroux, 1970) [“A dialética do sexo”, sem tradução em português] deveria ser leitura obrigatória (com os devidos cuidados) para quem quer queira entender as correntes mais profundas de nossa era incansavelmente revolucionária.

Em seu livro de 1970, A dialética do sexo, Firestone tentou alcançar uma espécie de mistura de progressismo, marxismo e cientificismo – uma tóxica combinação que hoje é a característica definidora da classe dominante que governa a ordem ocidental. Firestone entendeu que a visão marxista da igualdade radical jamais poderia ser alcançada sem antes enfraquecer e por fim desfazer a existência da família natural, que, em sua visão, sobrava como último vestígio da hierarquia e da submissão humana à ordem natural que haveria de ser, e tinha de ser, totalmente controlada pela tecnologia. Enfatizando a “flexibilidade da natureza humana”, Firestone concluiu que “a menos que a revolução arranque pela raiz os arranjos básicos da família biológica, a tênia da espoliação jamais será aniquilada” (pp. 9, 12).

Em seu livro de 1970, A dialética do sexo, Firestone tentou alcançar uma espécie de mistura de progressismo, marxismo e cientificismo – uma tóxica combinação que hoje é a característica definidora da classe dominante que governa a ordem ocidental

Firestone entendeu que a natureza era uma limitação à obtenção da liberdade humana pura, e até os avanços humanos no controle do mundo natural externo – aqueles originalmente defendidos nas filosofias de Descartes e Francis Bacon – eram insuficientes caso o controle não se estendesse ao controle tecnológico da natureza humana. As diferenças naturais entre os sexos eram, para Firestone, a limitação final à liberação humana igualitária, e a própria fundação e base da sociedade humana até aqui – a família humana – teria de ser eliminada em prol da liberação autoexpressiva.

Ademais, Firestone entendeu de maneira mais ampla que superar tais distinções biológicas naturais iria exigir não só a reelaboração da cultura existente, como também a sua completa eliminação. Contra as visões de figuras como Aristóteles e Vico, que entenderam que a cultura como uma elaboração da civilização humana ao lado da natureza e dentro dos seus limites, Firestone acreditava que a cultura era uma forma de limitação e controle que limitava a prioridade da autoexpressão. Ela citava, aprovando, a afirmação de Engels de que “toda a esfera das condições da vida que rodeiam o homem, e que até então foram governadas por ele, agora vêm ao domínio e controle do homem, que pela primeira vez se torna o Senhor da Natureza, real e consciente” (p. 163). Firestone articulou um projeto tecnológico que deveria tornar irrelevante qualquer cultivo ou apoio à cultura, resultando na “abolição das categorias culturais em si mesmas”. Num oceano de autoconstrução individual, qualquer necessidade humana de cultura iria retroceder. “Não perderemos isso. Não precisaremos mais disso: então a humanidade terá dominado a natureza totalmente, terá realizado seus sonhos em ato” (p. 174, ênfase dela). O sonho da revolução total, casando o individualismo materialista de Locke e a anti-cultura de Mill chegará por meio da revolução tecnológica. Afinal, esse projeto deveria ser avançado não pelo marxismo, senão pelo capitalismo, especialmente por meio dos sonhos febris liberacionistas de empresas de tecnologia.

O fim e propósito da humanidade seria o gozo do nosso eu físico livre de consequências e exigências, a realização da “autorrealização sexuada: seria possível alguém se realizar plenamente no processo de ser e atuar”

O propósito último era o controle completo da biologia humana, especialmente reprodução. Firestone apontou para os desenvolvimentos existentes na contracepção, fertilização in vitro, inseminação artificial e tinha esperanças de avanços futuros em placentas externas e partenogênese – “nascimento de virgem” (p. 179). A necessidade de controlar a nossa biologia se estendeu até o efetivo fim da necessidade humana de trabalhar para prover a nossa continuidade biológica, e até a potencial substituição completa dos seres humanos, com Firestone endossando a “cibernética”, ou o que chamamos hoje de “inteligência artificial”. Firestone celebrou a vindoura libertação da humanidade em relação das demandas brutas de nossas naturezas físicas, antecipando o dia em que homens, mulheres e crianças seriam liberados de quaisquer categorias biológicas, gozando de nossa “sexualidade polimorfa natural” (indicando paradoxalmente que nossa natureza é completada pela conquista tecnológica da nossa natureza). O fim e propósito da humanidade seria o gozo do nosso eu físico livre de consequências e exigências, a realização da “autorrealização sexuada: seria possível alguém se realizar plenamente no processo de ser e atuar” (p. 187).

Firestone vislumbrou uma fusão de uma revolução total marxista realizada através dos avanços do capitalismo materialista: uma revolução focada em libertar a humanidade do corpo humano, e que confiava no avanço tecnológico e na derrocada dos costumes e da cultura. Hoje essa revolução se revela em sua forma mais pura não nas graduações em feminismo marxista, senão no ethos das nossas empresas mais dominantes: os monopólios de tecnologia do Vale do Silício. Esses massivos conglomerados se baseiam na realização da transcendência gnóstica da nossa natureza corpórea, e cheios de versões atualizadas da visão de Firestone acerca da humanidade liberta pela tecnologia, agora expressa especialmente pelas visões do transumanismo.

Esse último estágio da revolução modernista e progressista é especialmente visível hoje, na ascensão do “woke capitalism”, que combina individualismo radical, anti-cultura e a derrubada revolucionária das instituições tradicionais, colocadas em poder político das empresas, exercido não só contra religiosos, mas até contra atores políticos soberanos. Esses poderes operam como um regime político não-oficial, moldando o horizonte da humanidade contemporânea enquanto alinham seus recursos e poder para moldar a percepção e demolir a oposição política. Se uma geração anterior de empresas como a Standard Oil e a Carnegie Steel esteve à frente da extração de recursos e da conquista do mundo natural, as empresas de hoje, como Apple, Netflix e Meta (Facebook) avançam de uma vez sobre uma experiência incorpórea do mundo e de uns aos outros, enquanto apoiam causas políticas cujo resultado final é a conquista da última fronteira da natureza: o corpo humano. Aquilo que a extração de combustíveis fósseis ofereceu à humanidade há várias gerações -- a libertação da humanidade do lugar, de tarefas servis, de nossa experiência do mundo em suas formas diurnas e anuais – é hoje avançado por meio de tecnologias de realidade virtual, com as mentes gnósticas não precisando mais do corpo para se comunicar, um constante fluxo de titilação e distração. Seu compromisso direto com as causas da liberação sexual combina com a natureza da tecnologia que hoje vem a dominar a vida moderna. E, tal como a confiança dos progressistas de vários séculos atrás que acreditaram que queimar combustíveis fósseis não teria nenhuma consequência ruim, hoje também os progressistas abraçam e comemoram o novo ethos liberacionista – até elogiando “o lado bom da ganância” – como rota moralmente pura para o progresso e a perfectibilidade. As consequências prováveis de transformar o corpo humano em mercadoria, crianças em produtos, de manipular nosso próprio código genético e misturá-lo com silicone e inteligência artificial, com a certeza dos antigos profetas, acabará ameaçando o futuro da espécie humana, com tanta certeza quanto o aquecimento global que surgiu da rápida combustão de milênios de carbono armazenados.

Hoje essa revolução se revela em sua forma mais pura não nas graduações em feminismo marxista, senão no ethos das nossas empresas mais dominantes: os monopólios de tecnologia do Vale do Silício

Quem quer que se oponha ao avanço desse futuro imaginado – o que Firestone louvou como o gozo que surgiria do “processo da experiência, em vez da qualidade da consecução” (p. 174) – deve ser derrotado em nome do progresso. Deve ser forçado a ser livre, seja pelo poder político, pela força reunida na turba online, pela ameaça da destruição da reputação, ou pela perspectiva da destruição econômica. O poder é assimétrico: o que é permitido a esse regime não-oficial é negado àqueles que objetam (assim, Memories Pizza e Chik-Fil-A são vilipendiados por uma opinião política; a Apple é louvada). Alguns liberais à moda antiga apelam para os princípios de fair play, liberdade de expressão, neutralidade. Aqueles que levantam tais acusações têm a impressão absolutamente falsa de que as acusações de “padrão duplo” podem resolver o problema. Ainda assim, aqueles que acusaram com hipocrisia não estão nem aí; exibem a maior indiferença e completa impunidade perante tais acusações. Eis como Adrian Vermeule, professor de Direito em Harvard e escritor no Postliberal Order, descreveu tal fenômeno: “não é hipocrisia; é hierarquia”.* Com toda a Elite do Poder promovendo uma distinta cosmovisão de liberação radical, não se pode esperar nenhuma norma procedimental neutra, nem fair-play: em vez disso, contínua e consistente extensão e expansão do poder com o propósito de estender a realização de uma nova humanidade é o único propósito. [*Agradeço a Adrian Vermeule por sugerir este termo para descrever o fenômeno: a completa indiferença quanto à evidência da hipocrisia não revela impudicícia, senão hierarquia.]

O mais chamativo desse avanço da Hierarquia progressista é a sua indiferença quanto a se é efetivada sob o disfarce de mecanismos “democráticos”, imposição por poderes de empresas ou mídia, ou até pela censura prática de visões opostas, em especial por meio do controle empresarial de redes sociais. O poder eficaz é pervasivo, inserindo-se em cada aspecto da vida humana. Só há uma conclusão que se pode tirar: o poder que introduz uma humanidade sem limites deve ser combatido e anulado por um poder que respeita e apoia a natureza e seus limites.

Patrick Deneen é professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e autor de "Por que o liberalismo fracassou?" (Âyiné, 2020). Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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