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A assistência integral e a polêmica fabricada
| Foto: Felipe Lima

Em quase todos os livros de ética médica essa máxima está ilustrada de alguma forma, com algumas divergências na tradução: “O médico às vezes cura, muitas vezes alivia e sempre é um consolo”. Essa ideia tem origem na medicina de Hipócrates, mas a célebre frase tem origem francesa, no século 15.

Há décadas a dependência química já é encarada como uma doença pelos profissionais da saúde mental. Felizmente esse entendimento tem crescido substancialmente também em boa parte da população, tirando-a do aspecto moral. Partindo da premissa de que a dependência química é uma doença, e que a cura é a meta inicial dentro dos tratamentos de saúde, a busca pela abstinência completa do uso de substância é o que o profissional de saúde deve buscar. Claro, não se trata de uma tarefa fácil para os profissionais, nem para pacientes e familiares.

Ter a chance de um internamento temporário é um direito, não um ato de desumanidade

Para que a chance de alcançar abstinência seja aumentada, nenhum equipamento de saúde deve ficar de fora da complexa rede de tratamento necessária. Hospitais, comunidades terapêuticas, ambulatórios, Caps, grupos de apoio devem estar à disposição. Existem vários níveis de gravidade e especificidade para cada pessoa que sofre com dependência química e, infelizmente, com razoável frequência a situação é tão crítica que o internamento em um hospital é necessário, e por vezes (mas nunca via de regra) de forma involuntária, até que a capacidade de discernimento da pessoa seja recuperada.

São casos de vida ou morte, de extrema vulnerabilidade física, emocional e social. Nestas situações, ter a chance de um internamento temporário é um direito, não um ato de desumanidade, como infelizmente ainda é alardeado. Hospitais psiquiátricos (ou alas psiquiátricas em hospitais gerais) são necessários; é sua qualidade que tem de ser questionada, em uma incessante busca de melhora no atendimento, não a sua existência.

Por isso, o Decreto 9.761, de abril, e a Lei 13.840, de junho, vão ao encontro desse entendimento: garantir a assistência completa e aumentar a fiscalização. Não há nada de polêmico. Não existe nenhum interesse em usar hospitais psiquiátricos para retirar a pessoa da sociedade de forma prolongada e trancafiá-la em um manicômio, como na história soberbamente exposta por Machado de Assis em O Alienista.

Além da linha em que se busca a abstinência total no uso da substância, existe a redução de danos. A ideia, de forma bem resumida, seria se importar mais com a repercussão danosa oriunda do uso de substâncias (overdoses, danos à saúde e transmissão de doenças, por exemplo), assim como visar um uso menos intenso e lesivo das substâncias; ou, ainda, a troca de uma substância por outra com menor potencial danoso hipotético. Seria o equivalente ao “muitas vezes alivia” do famoso ditado.

O debate acadêmico sobre qual estratégia usar é extenso e controverso. Porém, se com muito esforço existe a possibilidade considerável de cura, apesar de o dependente ser considerado em remissão em vez de curado, pois um deslize no autocuidado pode ser o suficiente para se ter recaída, não há motivos para abdicar dessa possibilidade e adotar a redução de danos como estratégia inicial.

Marcelo Daudt Von der Heyde é vice-presidente da Capital da Associação Paranaense de Psiquiatria (Appsiq).

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