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A Bolívia está morrendo de novo

Fotografia tirada em 3 de junho de 2025, de pessoas bloqueando uma estrada durante um protesto em El Alto, Bolívia. (Foto: Gabriel Márquez/EFE)

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Em 19 de agosto de 1985, o tetrapresidente boliviano Víctor Paz Estenssoro fez um diagnóstico contundente em rede nacional de televisão: "A Bolívia está morrendo". Ele alertou os cidadãos sobre a grave situação sanitária do país: o país enfrentava uma doença profunda que, se não tratada, levaria à morte. A doença era uma crise econômica aguda, marcada por uma hiperinflação astronômica.

Hoje, quase quarenta anos depois, e no ano do bicentenário da independência da Bolívia, a frase ressoa fortemente na mente dos bolivianos. A doença não é mais meramente econômica. A Bolívia está morrendo: institucional e politicamente.

Uma crescente desconfiança nas instituições

A crise da Bolívia é essencialmente institucional, a ponto de a vasta maioria das instituições estatais ter perdido a confiança do povo boliviano. Não há confiança no poder executivo, pois há muito se acredita que ele governa por si só. Não há confiança no judiciário, na independência dos juízes ou na imparcialidade dos resultados. Tampouco há confiança na Assembleia Legislativa: ela se mostrou inadequada para representar os bolivianos.

O comportamento incivilizado de políticos em espaços de debate institucionais gera desdém da população em relação a eles

Com o primeiro turno das eleições presidenciais se aproximando (17 de agosto), não há sequer confiança no órgão eleitoral: alguns bolivianos temem que as eleições não sejam justas e, ultimamente, até mesmo entre os próprios políticos.

Por exemplo, Manfred Reyes Villa, candidato pelo partido APB Súmate e prefeito de Cochabamba, declarou em fevereiro que "ninguém confia no registro eleitoral". Essa crise de confiança não decorre de uma extrema sensibilidade do povo boliviano, mas da observação de um Estado que, por meio da corrupção e da ineficiência, conquistou o que lhe é devido.

A crise também é política, porque a confiança em toda a classe dominante foi perdida. Não há confiança nem na direita nem na esquerda, nem em governantes, nem em opositores, nem em novatos nem em veteranos. 

E, assim como acontece com as instituições, essa desconfiança é merecida. Eles a conquistaram: com sua irresponsabilidade, com seus escândalos — que vão de casos de corrupção a brigas no legislativo —, com o ridículo constante das instituições que representam. 

Eles conquistaram isso com sua desconexão com a realidade do país, com sua ignorância — se não mesmo cinismo absoluto — em relação à situação de milhões de bolivianos. E também com sua incapacidade de dialogar, de se comprometer com um consenso mínimo, de pensar a Bolívia além de seus próprios interesses. 

Um exemplo recente confirma isso: em 19 de maio, data limite para o registro de candidatos, pelo menos dez duplas diferentes de candidatos se apresentaram. Seis da oposição e pelo menos três alegando representar o partido governista (o esquerdista MAS, Movimento ao Socialismo, do ex-presidente Evo Morales).

Inflação, trabalho informal, longas filas…

O problema subjacente é a falta de racionalidade política. Isso não significa que não haja cálculo e estratégia na política boliviana — há muito disso —, mas que qualquer tentativa, mais ou menos séria, de pensar o país foi abandonada. A política deixou de ser a arte de deliberar sobre o que o país é e o que poderia ser, de construir um projeto comum.

Mais de 80% da força de trabalho do país trabalha informalmente

A racionalidade necessária foi substituída pelo instrumentalismo estratégico: o país não é considerado porque aqueles que deveriam considerá-lo são incapazes de escapar do seu próprio controle.

Em vez de organizar o bem comum, eles criam a desordem. E há muito deixaram de se esforçar para servir ao povo que os elege. A política boliviana tornou-se uma massa de egos e ambições que, na maioria dos casos, acaba por esmagar o povo boliviano.

Hoje, os bolivianos sofrem as consequências dessa crise política e institucional na forma de uma crise econômica que se agrava a cada dia. Em abril deste ano, uma economia já frágil — com mais de 80% da população trabalhando informalmente e uma taxa de câmbio paralela três vezes superior à oficial — é agravada pela alarmante inflação anual de 15% registrada pelo Banco Central.

Com isso, os bolivianos começam a perder. Perdem a capacidade de consumir, à medida que o preço dos produtos sobe devido à desvalorização do peso boliviano. Perdem as economias de uma vida inteira, que a inflação começa a consumir lentamente. Perdem tempo, esperando em longas filas para obter produtos básicos como gasolina, petróleo, arroz e muito mais. E com tudo isso, suas esperanças e sonhos também são destruídos.

A Bolívia enfrenta hoje as consequências de uma longa ausência — se é que alguma vez existiu — de uma boa política: aquela que pensa e sonha com o país. Não aquela que simplesmente permite que a vida viva, mas aquela que aspira a viver bem. Aquela que serve e não é servida. Essa política sobrevive — ou talvez só exista — no coração daqueles que, silenciosamente, ainda ousam pensar na Bolívia e sonhar com ela. É aí que ainda reside a esperança.

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Um país nas garras da irracionalidade

A Bolívia está morrendo, é claro, para nós, bolivianos. De dentro e de fora, vemos nosso país morrendo, independentemente de nossas filiações políticas.

Os países da América do Sul também estão morrendo. Como Fernando Schmidt — embaixador do Chile no Brasil e ex-subsecretário de Relações Exteriores — corretamente apontou em uma coluna, o que está acontecendo na Bolívia deveria alarmar seus vizinhos: o fogo que consome a casa alheia nunca está tão distante quanto imaginamos. Seu alerta merece ser ouvido.

Mas o país também está morrendo por aqueles que não são nem bolivianos nem sul-americanos. Sua agonia coloca uma questão ao mundo — e especialmente ao Ocidente: estamos prontos para testemunhar outro fracasso da democracia? Estamos preparados para aceitar as consequências: uma nova crise migratória, o enfraquecimento do Estado de Direito, a ascensão de forças autoritárias?

Nos meses que antecedem o bicentenário da fundação do país, o mundo precisa observar a Bolívia de perto. O que acontecer lá não será apenas uma consequência de seus conflitos e feridas internas, mas também um sintoma do que acontece quando uma nação deixa de pensar em si mesma, quando deixa de ter uma visão comum, quando cai nas garras da irracionalidade.

A morte da Bolívia — ou o agravamento de sua doença — será, naturalmente, uma tragédia nacional e motivo de tristeza e preocupação para os bolivianos. Mas esses ventos fúnebres também sinalizarão uma nova derrota do ideal democrático.

Um país nunca morre simplesmente. Ele morre em nós.

©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Bolivia se “nos” muere, otra vez

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