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Norberto Bobbio rogava ao bom Deus que nos livrasse de uma sociedade na qual ser livre fosse obrigatório. Estava redondamente certo: quem conhece minimamente a história europeia dos últimos dois séculos sabe como ninguém que a indignação tem lá os seus perigos. O “despotismo da liberdade” evocado por Robespierre e seu séquito figura como exemplo ilustríssimo.

Convenhamos que, como se diz, estar revoltado não necessariamente implica que tenho razão – com frequência assombrosa, é o inverso que ocorre.

Note-se a “questão feminina” em voga. Num arroubo que se pode dizer gnóstico, certas feministas (ou femistas) conclamam as fileiras contra a “ditadura da biologia”; Luce Irigaray, conhecida no meio, denunciou a fórmula einsteiniana E=mc² como uma “equação sexista” que privilegia a velocidade da luz em detrimento de outras velocidades “menos masculinas” (!), e protestou igualmente contra “o privilégio da mecânica dos sólidos” sobre “a mecânica dos fluidos”; em 1963, Betty Friedan insurgiu-se contra os lares pequeno-burgueses, que na sua visão guardavam as feições escarradas de “confortáveis campos de concentração”. Esta retórica estridente e apocalíptica tem ditado muitas regras na máquina legiferante da burocracia europeia e americana atual (embora os parlamentos sejam maciçamente ocupados pelos homens. As diferenças entre os sexos não são o ponto em causa, percebe-se?).

Não temos certeza de quanta loucura o mundo ainda aguenta

O efeito nefasto mais imediato do destempero nas paixões (no sentido do sentimentalismo que pode emergir de qualquer revolta) é, obviamente, a fragilização da capacidade de captar e de expressar complexidades. Como o debate político é hoje pautado pelas redes sociais e reduzido a elas – as quais, ao contrário do que parece, estão longe de serem modernas ágoras –, a vida coletiva contemporânea progride célere rumo ao completo abandono da realidade, à consagração de uma macabra fuga mundi, imagem acabada daquele desprezo pelo mundo concreto que os críticos da religião erroneamente julgam flagrar no ascetismo dos crentes. Neste sentido, Otto-Maria Carpeaux captou sagazmente o equívoco dos antirreligiosos, ao arrematar sobre a santa de Ávila: “Levar o mundo a sério é a lição dos santos”.

Volto às moças, porque, como vimos, a maré de insensibilidade com relação às sutilezas (também) as tem colhido impiedosamente, tornando-as presas fáceis de um sem-número de demagogos e demagogas de marca. Não sei quantas compreenderam que, sob o pretexto de libertação das mulheres (para, entre outras coisas, terem o “direito de errar” com tanta aceitação social quanto a de que gozam os homens numa sociedade machista), esconde-se a imposição do dever (a tal liberdade obrigatória) de que elas repetidamente cometam as mesmas imbecilidades perpetradas por muitos homens ao longo dos tempos.

Do mesmo autor: Da sobrevivência e seus inconvenientes (10 de fevereiro de 2018)

Leia também: A humanização do feminismo (artigo de Maria Ticiana Araújo, publicado em 31 de outubro de 2014)

Acontece que não temos certeza de quanta loucura o mundo ainda aguenta. Os tropeços humanos, sobretudo quando envolvem mais de um indivíduo, não podem ser, como muitos querem, direitos, senão doídas concessões. E não podem constituir direitos precisamente pelo que disse Bobbio: as virtudes florescem no poder decisório dos indivíduos, e a “liberdade obrigatória” seria um deslize tolerável, um puro e simples contrassenso, caso permanecesse confinada à doçura etérea das ideias e não se transmutasse em toda sorte de monstruosidades políticas.

A verdade sempre foi um desafio ao espírito humano. Sócrates, culminando em Cristo, entendia como buscar a verdade implica o compromisso moral de não negá-la quando ela aparece. Como hoje as obviedades soam pedantes e até dogmáticas aos ouvidos treinados nos cânones foucaultianos (pós-modernos em geral), a mentalidade socialmente vigente não pode senão refletir o quadro intelectual donde provém.

É célebre a frase de Oswald de Andrade (de quem não sou nenhum fã) sobre a “contribuição milionária de todos os erros”. Custa esperar que todos nós, (pós-)modernos, reconheçamos os nossos erros sentimentais. Com efeito, ao menos desde Pilatos, aquele que diz a verdade é como um barco de resgate a conseguir salvar uns poucos náufragos.

Glaucio Vinicius Alves é mestre em Ética e Filosofia Política e presidente do Instituto Leão XIII. O autor agradece a contribuição de Bruno Menezes, conselheiro do Instituto Leão XIII.
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