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A confusão entre o público e o privado é uma marca fundamental da sociedade brasileira. As raízes históricas desse fenômeno são claras. Nos tempos de colônia todos os negócios privados passavam pelo crivo do Estado Português. A definição das capitanias hereditárias foi realizada pelo Estado. Nossas atividades comerciais, respeitando o pacto colonial, eram realizadas exclusivamente com a metrópole portuguesa. Mais contemporaneamente, durante o pe­­ríodo da ditadura militar, as relações com o Estado foram fundamentais na criação, expansão e desenvolvimento de grandes grupos nacionais que apoiavam, sobretudo ideologicamente, o regime.

A década de 90 foi marcada pela crítica à interferência do Estado na economia, sobretudo no que diz respeito às atividades de produção de bens e serviços. O processo de desestatização empreendido a partir do governo Collor e acelerado na gestão FHC promoveu uma brutal redução da participação do Estado enquanto ofertante de bens e serviços. Não obstante, a confusão entre o público e privado permaneceu intacta. Grandes projetos recentes, como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte e o projeto do trem-bala, só irão sair do papel se o Estado brasileiro bancar a maior parte dos investimentos. Especula-se inclusive em criar empresas do Estado para viabilizar o empreendimento. Não será surpresa se após o início das operações os defensores do livre mercado pleitearem a privatização da parcela pública dos investimentos. As discussões sobre os investimentos para a realização da Copa de 2014 seguem um caminho igualmente perigoso.

Antes de qualquer coisa, para evitar confusões no argumento, é preciso enfatizar que a Copa do Mundo é o principal evento esportivo global. Os impactos positivos para o país promotor do evento, em especial a dinamização do turismo que pode ocorrer após a sua realização, são relevantes. Da mesma forma, sua realização, em qualquer país, conta com recursos públicos e privados.

No Brasil, dada a histórica apropriação privada de recursos públicos, certos conceitos que deveriam ser óbvios precisam ser enfatizados. Em essência, devemos respeitar uma regra simples: recursos públicos devem ser alocados em atividades que gerem benefícios públicos. Via de regra, os recursos públicos devem ser aplicados na melhoria das condições de infraestrutura do país. As melhorias derivadas desses investimentos, sobretudo nas áreas de transportes e telecomunicações, constituem-se numa herança importante do evento para o país promotor.

Os investimentos privados devem ser promovidos preferencialmente com recursos privados. Evidentemente, isso não exclui a possibilidade, caso necessário, de recorrer aos empréstimos do BNDES. Como qualquer em­­préstimo, esses implicam pagamento de juros sobre o capital, assim como o pagamento do prin­­cipal da dívida. Implicam a tomada de risco por parte do tomador. Afinal de contas, é sempre bom lembrar que no capitalismo a tomada de risco e a possibilidade de perda fazem parte do negócio.

Soluções "criativas", do ponto de vista de seus inventores, que fazem do Estado, mais especificamente de recursos públicos, um "parceiro" de última hora não deveriam ser levadas a sério. Uma parte de nossos capitalistas precisa apreender a correr riscos, a colocar seu capital em risco, deixando que os recursos públicos atendam às demandas efetivamente públicas e não a interesses particulares movidos exclusivamente pelo desejo de acumular capital sem riscos.

É preciso evitar que recursos públicos sejam simplesmente transferidos para agentes privados sob o argumento de que esta é uma condição necessária para viabilizar a Copa de 2014. No limite, recursos do BNDES, na forma tradicional de empréstimos, podem ser utilizados para viabilizar o evento. O que a sociedade brasileira não pode permitir é que se use a Copa de 2014, ou seja, que se use uma verdadeira paixão nacional – o futebol – como mecanismo de en­­riquecimento privado. A "Viúva" não pode pagar a conta.

Marcelo Curado, doutor em Economia, é vice-diretor do Setor de Ciências Sociais Aplicadas da UFPR

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