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A imprensa nacional deu destaque à primeira condenação de parlamentar no STF desde 1988, proferida em 13 de maio de 2010 em detrimento do deputado federal Zé Gerardo (PMDB-CE), em ação penal por crime de prefeito, por desvio de finalidade de verba de convênio firmado em 1997 entre o município de Caucaia (CE) e o Ministério do Meio Ambiente, no valor de R$ 500 mil, ao tempo em que o parlamentar era prefeito municipal.

O relator do caso, ministro Ayres Brito, aplicou a sanção de 2 anos e 2 meses de detenção, substituída pelo pagamento de 50 salários mínimos e prestação de serviços à comunidade durante o tempo da pena, voto acompanhado pela maioria.

Essa isolada condenação merece reflexão da sociedade brasileira, diante de sua estranha excepcionalidade, que nos leva ao menos a duas explicações: ou os nossos políticos são um exemplo de retidão na vida pública, ou o sistema de foro privilegiado existente no Brasil é ineficaz, não permitindo a materialização da responsabilidade criminal dos agentes políticos.

Os repetidos escândalos que nos assolam não deixam dúvida quanto à resposta adequada. O foro privilegiado é nocivo à sociedade brasileira, merecendo reforma constitucional destinada a suprimi-lo, servindo apenas para estimular a corrupção e a impunidade.

A alteração desse quadro de ineficácia na prestação jurisdicional baseada no privilégio de foro exige uma série de reformas, dentre elas a imediata revisão do modelo, que historicamente serviu apenas para fabricar injustiças, alimentando a desigualdade de tratamento entre brasileiros, o vicioso ciclo da prática de crimes contra a Admi­­nistração Pública e a verdadeira irresponsabilidade dos mandatários, que em momento algum da história brasileira foram efetivamente alcançados pela Justiça criminal.

Os altos servidores públicos não só não são iguais aos demais cidadãos perante a jurisdição, como são, na prática, imunes à responsabilidade criminal, dentre outras causas, em função desse privilégio, como retrata a isolada condenação do parlamentar, denunciando uma perversão do sistema penal brasileiro: o Direito Penal não se destina aos ricos e aos poderosos.

A alegação de que seria um absurdo que um presidente da República ou um ministro do STF pudesse ser processado criminalmente por um promotor de Justiça de 1.º grau e condenado por um juiz de Direito de 1.ª instância não procede, pois, na República, todos os cidadãos devem receber tratamento isonômico e impessoal do Estado, inclusive no que se refere à prestação jurisdicional. Ademais, o devido processo legal, o duplo grau de jurisdição e a jurisdição prestada pelos tribunais superiores em sede recursal reduzem a zero o índice de erro judiciário, sendo remota, para não dizer inexistente, a possibilidade de algum tipo de perseguição política.

Também não se justifica o argumento de preservação do cargo, porque nada autoriza que no Estado de Direito o cidadão que exerça cargo público, em qualquer nível, possa praticar delitos sem ser responsabilizado.

Essa concreta imunidade funcional, além de ferir o direito de igual tratamento entre brasileiros, contradiz o princípio republicano como a forma de governo que pressupõe a responsabilidade dos mandatários. A irresponsabilidade é própria das monarquias absolutistas, marcadas por uma sociedade de castas, essencialmente desigual. Como o Brasil é uma República centenária, um Estado Democrático de Direito que prestigia a igualdade e a moralidade administrativa, o privilégio de foro não mais encontra na atual quadra da vida política nacional justificativa plausível e legítima.

Se realmente almejamos alcançar os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, é essencial que os governantes e as autoridades públicas em geral submetam-se como qualquer cidadão à Justiça criminal comum, livre de qualquer privilégio, para que não nos deparemos com a excepcional notícia de uma nova condenação no STF somente daqui a 22 anos.

Mateus Bertoncini, doutor em Direito do Estado, é professor do programa de Mestrado em Direito do UniCuritiba, professor da Fempar e promotor de Justiça no estado do Paraná

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