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O Brasil comemora uma regra que permite impedir candidaturas de pessoas com ficha-suja no passado, mas não fazemos um exercício para saber se merecemos ficha limpa por nossa história.

Não merece ficha limpa um país que, durante 124 anos após a Abolição, ainda tem no Congresso, à espera de votação, um texto que pune os que usam trabalho escravo; e que, em 123 anos de República, tem 12 milhões de adultos que não reconhecem a própria bandeira porque não sabem ler o texto escrito nela.

A primeira condição para dar ficha limpa a um país é atestar o bom tratamento destinado a suas crianças. Não merece ficha limpa um país que tolera crianças submetidas à exploração sexual; que trabalhem ao invés de estudar; e com um número de assassinatos de meninos e meninas maior do que em todos os demais países, incluindo àqueles em guerra. Não merece ficha limpa um país com crianças abandonadas, trabalho infantil e prostituição.

Não merece ficha limpa o país que nega ensino médio a dois terços de sua população e condena a outra parcela a uma educação sem condições de competição no mundo moderno.

Não é possível dar ficha limpa a uma sociedade que escolhe, desde o nascimento da pessoa, se ela vai ou não ter educação, conforme sua classe social e a renda dos pais. Não é ficha limpa país que tem a 6ª economia mais rica e não consegue pagar um piso salarial de R$ 1.451 aos professores.

A ficha limpa de um país exige que ele cuide bem de seus recursos naturais para servir às gerações futuras, e não se pode dizer que o Brasil cumpriu ou está cumprindo esta condição. Vemos uma nação ficha-suja por devastação de florestas, sujeira nas águas, vastas áreas cobertas por lagos artificiais e o ar poluído. O Brasil não merece a ficha limpa ecológica.

Também temos a ficha suja pela desigualdade. Nossa ficha social é suja por causa da brutal desigualdade de renda, uma das piores do mundo, quando não a pior de todas. Nossa ficha é suja também por causa da desigualdade nos serviços públicos: alguns brasileiros têm um sistema de saúde igual aos melhores do mundo, enquanto a maioria está submetida a um sistema igual aos piores do mundo.

Temos ficha suja na segurança, com cerca de 40 mil assassinatos por ano e mais de 1 milhão de pessoas mortas nos últimos 30 anos; e no trânsito, com mais de 50 mil pessoas mortas por ano no asfalto.

Somos também ficha suja nas condições urbanas descontroladas pelo lixo, poluição visual, degradação habitacional e trânsito estrangulado. Não merecem fichas limpas cidades onde as pessoas perdem mais de mil dias de vida adulta por causa de engarrafamentos no trânsito.

Não teremos ficha-limpa enquanto escondermos recantos de nossa história, por causa de acordos políticos ou por medo de enfrentar a verdade; e enquanto a Justiça não for eficiente e respeitada, independente da influência do dinheiro e das relações pessoais.

O país que, por falta de educação das suas crianças e de investimentos em ciência e tecnologia, perde competitividade internacional e mantém suas exportações baseadas em produtos primários, e que, se não se transformar em produtor de bens derivados da inteligência e do conhecimento, não terá ficha limpa no futuro.

Como vamos dar ficha limpa a uma sociedade que tenta corretamente exigir ficha limpa de seus candidatos, mas no dia a dia tolera a corrupção nas prioridades da política? Para um político receber ficha limpa, basta não ter roubado no passado, mesmo que continue com prioridades descomprometidas com o futuro do país. A ficha limpa pode melhorar a ética dos políticos, mas não vai necessariamente mudar a ética nas políticas. Não merece ficha limpa o país que tiver seus políticos com ficha limpa, não roubam para si, mas continuam mantendo privilégios, inclusive para si, e investindo o dinheiro público nas mesmas prioridades de políticas em benefício das classes privilegiadas no presente, ao invés de beneficiar todo o povo e as futuras gerações.

Devemos comemorar que o Brasil, finalmente, tem uma Lei da Ficha Limpa para eliminar políticos corruptos, mas precisamos fazer o Brasil ser um país ficha-limpa.

Cristovam Buarque, professor da UnB, é senador pelo PDT-DF.

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