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Dono de restaurante normalmente é um cara sem muita instrução, com pouca formação acadêmica. Mas vamos falar a verdade: que formação é necessária pra se tornar dono de restaurante? Espírito empreendedor, uma boa dose de carisma e coragem são suficientes pra começar um negócio. Dinheiro não está em primeiro lugar. Veja quantos são aqueles que começaram servindo churrasquinho na garagem da própria casa e se tornaram referência nesse negócio. O restaurante talvez seja a atividade econômica formal mais informal de todas. Nada mais é do que tirar o que se tem na geladeira, preparar no fogão e levar até a mesa. É exatamente o mesmo trabalho que você tem pra servir o almoço na sua casa.

Se sua comida for boa, você vai precisar de mais gente: seu filho vira garçom e sua mulher vai ajudar na louça. Se crescer ainda mais, você vai chamar seu irmão para fazer as compras e seu sobrinho pra atender ao telefone. Pronto! A garagem virou um negócio e já sobra um trocado para o aluguel. Você está feliz, virou dono de restaurante. Trabalha incansavelmente, de segunda a segunda, pra atender a fiel clientela. Seus velhos amigos não o veem mais. Você esquece o aniversário da afilhada e não pode ir ao casamento do melhor amigo. Agora, seus clientes são seus novos "amigos". Todos os dias alguém vai lhe oferecer uma taça de vinho, um licor, ou uma dose de uísque pra comemorar sei lá o quê. Uma data importante pra eles e, para você, apenas mais um dia de trabalho. Como estão na sua casa, você não vai saber dizer não, e, quando se der conta, vai estar à beira do alcoolismo. Assim a vida segue...

Chegará a hora dos primeiros investimentos: trocar as luminárias que estão engorduradas, aumentar a churrasqueira, alugar o terreno dos fundos para estacionamento etc. Vão aparecer as fiscalizações: Vigilância Sanitária, Bombeiros, Urbanismo, e dá-lhe correr pra lá e pra cá enfrentando a burocracia da prefeitura. Cansado dos erros e atrasos do seu sobrinho, você vai brigar com ele, ele vai processá-lo, e você sentirá por alguns meses um enorme desejo de exterminar uma espécie denominada "advogado trabalhista". Mesmo assim, você aprendeu a lição: vai registrar seu filho, seu irmão, sua mulher, cada um com um cargo e um salário específico. Quatro ou cinco anos se passaram e você, de tão ocupado que esteve, não se deu conta do que aconteceu.

De repente, no fim de uma tarde de domingo, seu filho, aquele menino que virou seu funcionário, chega pra você dizendo que está saindo de casa pra viver com a mulher. "Meu filho, quantos anos você tem?", você pergunta, pois não lembra da data de seu nascimento. Então cai a ficha: você virou escravo do seu próprio negocio. E a folga? Ah, a folga... Se você não tem um sócio, esqueça! Você nunca vai saber qual é o melhor dia pra folgar. Nos sábados e domingos não dá, porque são os dias de mais movimento. Nos dias de semana, você lida com os pepinos comuns a qualquer profissão: contas pra pagar, reformas pra fazer, rescisões, contratações, treinamentos. Com as férias é a mesma coisa. Não existe melhor época. Fim de ano não dá, por causa das festas de confraternização. No meio do ano, quando o movimento é ruim, também não dá, porque, já que está ruim, você tem de estar ali, agarrado nas economias. Mas tudo bem... Sua conta bancária está gorda e você tem um carro do ano. Trabalha como um camelo, mas é um empresário de sucesso. Afinal, você foi um dos poucos que se deu bem entre tantos outros que também tentaram.

Existe um "quê" de crueldade nessa profissão: tudo depende do dono. A decoração, o trato com o fornecedor, o recebimento da mercadoria, o pagamento das duplicatas, a qualidade da comida, a presença na mesa de cada cliente, o fechamento do caixa no fim da noite, a obrigação de estar sempre alegre e sorridente. O restaurante é seu filho, é a sua cara. Você quer que ele cresça e seja do jeito que você sempre sonhou. É até pior, porque um filho pode ficar na casa da sogra de vez em quando, mas o restaurante não.

Donos de restaurantes são centralizadores. Eles têm certeza de que são insubstituíveis. É a cultura do negócio. Eu nasci dentro de uma família de donos de restaurantes. Vivi tudo isso bem de perto. Eu era apenas mais um do time dos centralizadores. Um dia, passou pela minha cabeça: "E se eu morrer?" Tentei pegar mais leve: "E se eu ficar doente e tiver de parar?" Entendi, naquele momento, que meu negócio não poderia depender tanto de mim e vice-versa. Fui um pouco além: "Por que eu tenho de ficar doente para descobrir se meu negócio sobrevive sozinho?" Eram tantas as questões que fui parar num terapeuta, é claro. Mas deu no que deu: resolvi tirar minha própria "licença- maternidade" e sair por quatro meses.

Durante os meses que antecederam meu afastamento, tudo aquilo que eu fazia comecei a passar para os outros fazerem. Descobri um mundo novo. Descobri talento, competência e garra que estavam adormecidos em muita gente. Qualidades intocadas nos membros da minha equipe. Descobri como é poderoso o desejo de superação nas pessoas e como eu poderia usar aquilo a favor de todos: de mim, do restaurante e deles mesmos. Percebi que eu era dispensável, e que isso traria um novo mundo de possibilidades para minha vida. Ao mesmo tempo, traria medo: eu vivia na zona de conforto do ser indispensável, e se tornar dispensável, acredite, causa um grande desconforto.

Dez anos se passaram desde a minha primeira longa viagem. Aprendi na marra a me afastar do meu negócio e acredito que esse modelo funciona. Estou prestes a fugir novamente. Toda vez é um parto! Dá medo de voltar e ver tudo afundado. Mas esse sou eu, e é assim que vou tocando a minha vida. Não quero que a natureza decida por mim o dia do meu afastamento, quero fazer isso por mim mesmo. Se não for assim, nada mais faz sentido.

Beto Madalosso, chef executivo e gestor dos restaurantes Forneria Copacabana e Famiglia Fadanelli.

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