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A interminável discussão sobre segurança das urnas eletrônicas
| Foto: André Rodrigues/Arquivo/Gazeta do Povo

Com a chegada de mais um ano eleitoral, ressurge a surrada – mas viva – polêmica que liga urnas eletrônicas e lisura do pleito. Grande parte da discussão tende a exageros e devaneios. De um lado, a fé cega e dogmática na segurança da urna professada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE); de outro, as teorias conspiratórias e paranoicas, no melhor estilo “Illuminati”. A discussão foi intensificada no dia 15 de novembro de 2019, com o tuíte do presidente Jair Bolsonaro relativo à confiabilidade das urnas eletrônicas e à impossibilidade de auditar os resultados. O questionamento veio após a apresentação da PEC 135/19, da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), na qual ela expõe o histórico e a justificativa para que se tenha o voto impresso: o registro físico tornaria o sufrágio auditável em caso de indícios de fraude eleitoral.

A construção histórica desenvolvida pela parlamentar tem como marco a aprovação da Lei Federal 13.165/15, que incluiu o artigo 59-A na Lei das Eleições. Ali se define que, no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro do voto, que será depositado em local previamente lacrado de forma automática e sem contato manual do eleitor, para que este confira se o voto computado corresponde ao que ele digitou na máquina. A Justiça Eleitoral, no entanto, não empenhou esforços suficientes para que a exigência legal fosse implementada nas eleições de 2018 – e tudo indica que não o será também neste ano. Assim, apesar da declaração do corregedor-geral, ministro Jorge Mussi, e da carta dos Tribunais Eleitorais reafirmando a segurança das urnas, a resistência da Justiça Eleitoral serviu para que teóricos da conspiração e candidatos revanchistas ou inconformados colocassem mais lenha na proverbial fogueira.

Os questionamentos não se limitam aos círculos conspiracionistas: a vulnerabilidade do software das urnas eletrônicas é tema de diversos debates, que lançam mão de diversos argumentos – mesmo que de poucos deles se extraia consistência técnica mínima para que tenham credibilidade. Como exceções a essa regra, temos o debate realizado em 2018, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, no qual se destacaram as apresentações dos professores Diego de Freitas Aranha (de Criptografia e Segurança Computacional, da Unicamp) e Pedro Dourado de Rezende (de Ciência da Computação, da Universidade de Brasília), sendo que este último responde ao Congresso como consultor especialista há mais de 16 anos. As questões técnicas por eles levantadas não são sanadas pelo fato de não estarem as urnas conectadas à internet ou de haver impressão do boletim de urna. Não podem, portanto, ser minimizadas ou ignoradas.

Algumas das críticas originais à condução do processo eleitoral no Brasil têm quase dez anos. O TSE, contudo, ainda rejeita o ponto que parece comum às organizações de auditoria independentes e outras da sociedade civil que querem transparência no processo eleitoral: a implementação de registro físico e anônimo para auditoria e recontagem dos votos.

É inegável que a urna eletrônica trouxe sensíveis vantagens ao processo eleitoral, permitindo a contagem praticamente instantânea dos votos e uma drástica redução da interferência humana no processo. Além disso, a eleição informatizada foi decisiva no combate à compra de votos e ao “voto de cabresto”, práticas nocivas recorrentes no processo democrático, que comprometiam a legitimidade dos pleitos nacionais desde a Constituição de 1929. Os correligionários do TSE alegam que o registro anônimo físico facilitaria o retorno dessas práticas. Mas o eleitor que queira cometer o ilícito só precisa tirar uma foto da urna, quando na cabine de votação. Além disso, a preocupação de que o registro em papel comprometeria a lisura do processo não se sustenta: afinal, o comprovante físico de votação não ficaria com o eleitor (seria depositado sem interferência humana em um recipiente lacrado).

Ideal seria que o debate não se vinculasse a uma discussão hipotética e vazia de critérios técnicos sobre a segurança do meio usado, nem viesse contaminado pelo interesse velado de se questionar um resultado específico de alguma eleição passada. Até porque é preciso compreender que, em um país de proporções continentais como o Brasil, nada afastará por completo o risco de fraude ou falha.

Não é minimamente razoável sugerir a volta ao modelo exclusivamente impresso, sem urnas eletrônicas, pelos óbvios retrocesso e anacronismo. A insegurança em processos digitais é, na maioria das vezes, decorrente de desconhecimento técnico de interlocutores e limitação das informações que chegam aos cidadãos. O remédio é a criação de mecanismos mais eficientes para identificar e corrigir vulnerabilidades, inibindo ataques em potencial. Uma ferramenta que permita a auditoria seria uma contribuição positiva, mas não seria uma panaceia.

É preciso criticar a disponibilização insuficiente do código-fonte do software presente nas máquinas. Há mais de 20 anos esse código vem sendo mantido secreto e alterado pela Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE. Isso gera desconfiança e impossibilita a auditoria independente e conclusiva sobre sua confiabilidade. Abrir o código-fonte pode expô-lo a riscos, mas é essa exposição que permite corrigir e aprimorar o sistema, até que este esteja maduro para uso. A experiência mostra que obter de forma clandestina um código-fonte exige esforço relativamente trivial se comparado ao exigido para atingir um software livre robusto e amplamente testado. Manter o código em sigilo cria um problema maior que o que se pretendia evitar.

Outra crítica vai à forma de realização de auditorias eleitorais no Brasil. Formalmente, elas só podem partir de solicitação jurídica de cunho eleitoral. Isso embute a dificuldade de se desvincular um pedido de auditoria da intenção política subjacente. Ficam aí contaminados os argumentos, a motivação e a imparcialidade dos envolvidos.

Existe no Brasil o hábito de se alimentar militâncias partidárias com justificativas para derrotas ou resultados eleitorais insatisfatórios: fabricam-se desculpas, replicadas como mantras nas infindáveis discussões políticas em redes sociais e aplicativos de conversa. O grupo político vencido corre o risco de parecer ter aceitado tacitamente a derrota nas urnas em um processo legítimo, caso não peça auditoria dos resultados. Para não admitir essa derrota, o lado vencido incorre na banalização da auditoria e na contumaz apresentação de pedidos desarrazoados, a fim apenas de salvar aparências.

Assim, a discussão deve ter foco nítido nesses pilares: implementação de mecanismo que possibilite a auditoria sem facilitar a compra de voto; abertura do código-fonte para a sociedade civil com a progressiva maturação do software; e realização de auditorias independentes, frequentes e criteriosas. Com isso, o país teria condições de manter as vantagens trazidas pela urna eletrônica sem abalar a confiança dos cidadãos, da qual não se pode abrir mão para que os resultados sejam vistos como legítimos. Isso fortaleceria a credibilidade do processo eleitoral no Brasil e seria uma verdadeira festa para a democracia.

Bruno Cristaldi é graduado em Processamento de Dados e em Direito, pós-graduado em Direito Eleitoral, parecerista e consultor na área de Sistemas para o Poder Judiciário da Empresa Softplan. Felipe Madruga é graduando em Direito, tem especialização em Business Administration pela University of California, Berkeley e é associado do Instituto de Formação de Líderes – SP.

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