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O Checkpoint Charlie, em Berlim, indicava em várias línguas a entrada no Setor Americano. Foto de 1981.
O Checkpoint Charlie, em Berlim, indicava em várias línguas a entrada no Setor Americano. Foto de 1981.| Foto: Kelisi/Wikicommons

A informação é como um míssil cego que nunca encontra seu alvo (nem, infelizmente, seu anti-míssil!), e portanto cai aonde quer que se perca, ou então fica errando pelo espaço numa órbita imprevisível, onde circula eternamente como lixo.
(Jean Baudrillard, “The Gulf War: Is It Really Taking Place?”, 1991)

O Metaverso já era. “Uma nova Cortina de Ferro está descendo sobre internet russa”, proclamou o Washington Post. “De um jeito ou de outro”, escreveu a CNN, “a Cortina de Ferro digital parece estar descendo.” “A separação da Rússia,” acrescentou o New York Times, “é uma derrota para a crença, outrora defendida pelo Ocidente, de que a internet é uma ferramenta para a democracia que levaria os países a se abrirem.”

Por alguns poucos anos antes de a “Cortina de Ferro digital” descer, a internet cobriu o mundo como uma rede global de comunicação. Embora a maioria dos usuários ocidentais seja fiel às plataformas e veículos ocidentais, muitos baixaram o WeChat ou até o VK em seus celulares para se manterem em contato mais fácil com gente atrás do “Grande Firewall” da China, ou para acompanhar os eventos da Rússia por meio da plataforma russa. Ao mesmo tempo, os usuários da internet na Rússia poderiam acessar notícias e informações do Ocidente (ainda que as principais plataformas dos EUA obedeçam às restrições de conteúdo chinesas sem muito alarde).

A expectativa de que as redes sociais turbinariam a democracia já se desmilinguiram durante o governo Trump. Ainda que em 2012 os estadunidenses esperassem que seu mundo social fosse aprimorado pela internet nos próximos dez anos, uma enquete da Axios descobriu que 57% dos estadunidenses achava que as redes sociais prejudicavam a democracia. Mesmo assim, as relíquias da velha internet estão por todos os lados: ICANN, a ONG estadunidense que gerencia o Sistema Nacional de Domínios (DNS), ainda ostenta o mote vintage dos anos 90: “Um mundo, uma internet”.

À medida que a Cortina de Ferro digital descia [em março de 2022], os usuários da internet foram abrigados numa parte ou noutra da internet multipolar – ainda que não seja bem a maneira que eles tenham percebido a coisa. Os consumidores da mídia de países ocidentais não tiveram a atenção dirigida para a súbita ausência de fontes externas; em vez disso, leram sobre a tragédia que se impunha sobre os cidadãos russos, que não poderiam mais acessar as principais plataformas ocidentais e, assim, só poderiam consumir mídia estatal. Na verdade, ambas as partes entraram em novos mundos digitais. Tal como os cidadãos da Rússia se acharam fora do Setor Americano da internet, nós nos de repente nos vimos entrando nele.

Quais são as novas características do no Setor Americano?

Guerra informacional como geopolítica

Embora as análises sobre as forças em solo ucraniano divirjam, o Setor Americano da internet está unido numa afirmação confiante: a guerra informacional do Ocidente pôs Putin numa desvantagem decisiva. Como que para confirmar a confiança ocidental na guerra-informacional-como-geopolítica, a revista digital The Geopolitics proclamou, em 6 de março de 2022, que “O Ocidente está ganhando a Guerra da Informação.” Mas eles dificilmente estão sozinhos. CNBCSlate e o  Financial Times, para citar só uns poucos, publicaram artigos diferentes com o título “Ucrânia está ganhando a guerra da informação contra a Rússia.” Para não ficar para trás, a historiadora Margaret MacMillan acrescentou sua conclusão: “os ucranianos ganharam a guerra informacional com um pé nas costas.”

A guerra informacional tem duas consequências até aqui [em março de 2022]: (1) turbinar a aparência de uma provável derrota russa na Ucrânia e pressionar por uma política militar correspondente; e (2) forçar as empresas ocidentais a se retirarem da Rússia.

O problema é que, embora usar a guerra informacional possa ser uma tática dentro de uma estratégia maior, hoje parece ser uma substituição de nossa falta de estratégia. Apenas com dois dias de guerra, perfis de redes sociais lançaram a desinformação de que a União Europeia forneceria aviões para a Ucrânia usar. Como relatou o Politico, o parlamento ucraniano postou um tuíte sobre a Europa se comprometer a enviar setenta aviões para os ucranianos usarem. Daí a desinformação alcançou o status de meme por todo o Setor Americano da internet numa questão de minutos. E o que é mais importante: essa desinformação provavelmente guiou cálculos de membros da OTAN que depois tiveram de ser riscados.

Se cabeças mais frias não tivessem prevalecido, o Ocidente e a Rússia poderiam tomar o rumo da confrontação militar direta dentro de horas. Mas o incidente mostrou que os tomadores de decisão ocidentais estavam, e ainda estão, prestando atenção demais em trending topics, e pouca atenção em sua própria análise da situação.

Por outro lado, Putin não parece (segundo relatos ocidentais) nem mesmo tentar brincar de guerra da informação. Ainda que ele tenha desligados os holofotes sobre as mídias ocidentais, suas reuniões com “distanciamento social” do alto escalão (contrastadas com uma reunião calorosa com a equipe feminina) fizeram analistas ocidentais especularem por que ele não parece estar em seu próprio jogo de guerra informacional. Afinal, esse é o líder russo que mobilizou o RT para incitar tensões em mercados de mídia por todo o mundo – enquanto atraía curiosidade com a potência dos seus memes.

Ao mesmo tempo, a Rússia se manteve firme numa série bem clara de exigências quanto à futura situação da Ucrânia e aos interesses russos lá. Embora a desinformação seja uma parte legítima de qualquer plano militar – e a Rússia sem dúvida esteja espalhando sua própria desinformação –, a “guerra informacional” do Ocidente está causando uma séria disrupção na sua própria capacidade de fazer cálculos geopolíticos.

Uma coisa é quando as campanhas de propaganda são feitas para turbinar a solução. Mas, uma vez que os próprios processos de tomada de decisão agora estão expostos às nossas próprias campanhas de desinformação, a credibilidade de nossa “guerra informacional” é desafiada. Como as duas semanas mostraram, o sinal do sucesso em nossa guerra de informação parece ser medido em retuítes, bem como em extremos de “cancelamentos”.

Mas por quanto tempo as pessoas vão confiar no Setor Americano quando as narrativas de desinformação colapsam dentro de horas – não raro enquanto as decisões ainda estão sendo tomadas? Embora o consumidor médio de rede social possa ficar embasbacado perante a incansável agitação dos stories, nossos principais aliados e tomadores de decisão se cansarão disso rápido.

A hierarquia de decisão da internet

A necessidade de propaganda é parte de toda guerra, e é natural que a propaganda seja voltada para o seu próprio lado também. Com apenas uma semana de guerra, o New York Times resumiu os esforços de propaganda da Ucrânia, relatando a ascensão e declínio do (inexistente) #ghostofkyiv [Fantasma de Kiev]. Ao Times, o diretor Observatório da Internet de Stanford admitiu que as empresas de redes sociais tinham que “escolher um lado” e fazer vista grossa para a propaganda e a desinformação do lado anti-Rússia. Outra vez, normal, em se tratando de propaganda em tempos de guerra.

Ainda assim, se o Ocidente teve tanto sucesso na guerra informacional enquanto suas contas estão amplamente inacessíveis na Rússia, é de se peguntar: essa “guerra informacional” mira em quem? “Passar vários dias assistindo às notícias nos principais canais estatais, bem como acompanhando jornais controlados pelo Estado”, escreve o New York Times, “é testemunhar a extensão dos esforços do Kremlin em sanitizar sua guerra.” Mas, como o mesmo jornal nota, a propaganda ocidental vem sendo orientada para a criação de um efeito em espiral que não raro tem consequências incontroláveis. Ainda que, por enquanto, o comando militar do Ocidente pareça querer evitar uma guerra direta, todas as outras formas de guerra continuam sendo parte do jogo.

O problema é que a linha entre propaganda externa e tomada de decisão também se borrou. Parte do problema vem do fato de que os políticos estadunidenses e outros tomadores de decisão agora se tornaram “online demais”. Tão logo a invasão russa começou, contas de influencers por todo o Ocidente adotaram uma lista de exigências cada vez mais estridentes e perigosas. Senadores e deputados que olhassem para seus telefones se deparavam com uma enxurrada de… artefatos da guerra informacional ocidental.

Embora muito da escalada das respostas ocidentais tenha vindo de exigências de cancelamento, veio também de colocarem um peso otimista demais no heroísmo da resistência ucraniana. Liubov Tsybulska, chefe de um “Grupo Híbrido de Análise de Guerra” (e dona de um cobiçado selo azul do Twitter [pré-Musk]), tem dado origem a um grande número de memes extravagantes. “Em Kiev”, tuitou ela em 5 de março, “uma mulher derrubou um drone russo da varanda, com um frasco de pepinos. Como eles esperam ocupar este país?”

Uma vez que as tendências políticas estadunidenses foram dirigidas por paroxismos de indignação de redes sociais, não é de admirar que a série de ferramentas para responder à indignação continue igual. Como outra manchete do New York Times expressou: “Putin está sendo sancionado, mas a Rússia está sendo cancelada.” No mundo de reflexos da guerra informacional na internet, a escalada se alcança por meio de formas meméticas de chantagem emocional, cada qual orientada para aumentar as chances de “cancelamento” daqueles que não colaboram. Primeiro, as reações abruptas (cancelar [deplatforming] música russa aqui, exigir uma zona de exclusão aérea acolá) pareceram ser parte só do começo de um conflito chocante e esclarecedor. Mas, como a matéria do New York Times indica, o modelo reflexivo da cultura do cancelamento agora está dirigindo a diplomacia — e as pessoas que estamos deixando apopléticas somos nós mesmos.

A derrota da monocultura empresarial

Por anos, depois da Guerra Fria, presumiu-se que a presença das empresas ocidentais no antigo bloco soviético teria sucesso em espalhar valores estadunidenses – como respeito pela liberdade e por normas democráticas. O êxodo massivo das firmas ocidentais da Rússia é uma admissão de que sua presença contínua não ajudaria a facilitar a transição à democracia em países não democráticos. Afinal, se o êxtase de usar Apple Play bastasse para alimentar uma mentalidade democrática, a Apple deveria continuar funcionando na Rússia em vez de sair.

Claro, a transformação de empresas globais em atores políticos capazes de desconectar algum país da economia global pelo menos ajuda a esclarecer o que elas são de verdade. Por anos, as empresas ocidentais se pintaram como representantes de valores universais – imortalizadas pela “teoria dos arcos dourados da paz mundial” de Tom Friedman. Agora é óbvio que elas próprias exercem poder político. Depois de terem removido o presidente dos EUA de suas plataformas de tecnologia em 2021, agora elas podem se voltar para mídia “estatal” ou sinalizar contas “ligadas a o governo”, enquanto escolhem quais fontes governamentais contam como confiáveis em seus processos de “checagem de fatos”. Meta Platforms Inc., agourento nome do conglomerado que opera o Facebook e o Instagram, tomou a iniciativa de bloquear RT e Sputnik em seus serviços na Europa e no Reino Unido, enquanto reduzia a mídia russa estatal através de sua rede.

Como The Geopolitics observou (em meio aos elogios da guerra informacional em conjunto), "a desinformação complica a tomada de decisões e faz o irrazoável parecer razoável. Sancionar a Rússia parece ser um dos passos irrazoáveis lavados pela propaganda até parecerem aceitáveis." Não parece difícil entender por que a escalada de “cancelamentos” amiúde é contraprodutiva. Como Philip Pilkington apontou no UnHerd, as sanções ao petróleo e gás fazem mais mal a nós do que à Rússia. Do mesmo jeito, cancelar a cultura russa só confirma a alegação de Putin de que o Ocidente não despreza só o regime russo, mas a própria Rússia. Sanções que mirassem os apoios de Putin poderiam ser mais eficazes.

Na Universidade Yale, um professor de administração agora mantém uma lista de proscritos, com as empresas que deixaram de encerrar suas operações na Rússia. Clamores por sanções à Rússia logo evoluíram para exigência de que se bloqueassem importações essenciais vindas da Rússia, comprometendo todo o modo de produção e comércio ocidentais. A cultura do cancelamento, empresarial, tornou-se rápido um tipo de oba-oba: “Vamos bloquear todos os canais de notícia russos!” “Oh, sim, vamos parar de fazer entregas para portos russos!” “Sim, vamos suspender toda importação de material cru da Rússia!” A espiral ascendente perde qualquer referência a metas geopolíticas mensuráveis.

Política como propaganda comercial

Um traço da política guiada pela mídia é a necessidade de elevar os parâmetros da atividade ordinária enquanto distrai, ou dilui, a realidade da atividade extraordinária. O termo “guerra” esteve no centro dessa batalha. Durante a pandemia de covid, os políticos e autoridades sanitárias mais agressivos tinham uma necessidade palpável de experimentar suas medidas sanitárias como “guerra”. Na longa ausência de um conflito global intenso, parecia, porém, que os baby boomers precisavam de algo por que lutar. Ainda assim, por outro lado, onze anos atrás, durante os ataques à Líbia liderados pelos EUA, ouvíamos que aquilo com certeza não era uma guerra, senão uma “ação militar cinética”.

Quando tais termos mistificadores ocorrem numa área importante como propaganda comercial (advertising) — uma matrícula numa academia de ginástica é a “guerra à gordura!”, mas um fármaco sério é só a “pilulazinha azul” —, dificilmente temos uma ameaça à ordem mundial. Mas, no Setor Americano da internet, as tendências políticas se desenvolvem através desse tipo de moldura: um pequeno ato de conservação pode ser… sua batalha angular na guerra contra as mudanças climáticas! Enquanto isso, graves decisões políticas podem ser postergadas indefinidamente, e substituídas com facilidade por retóricas emotivas, exacerbadas pela tendência que rompantes emocionais têm de guiar as ações dos nossos oligarcas empresariais.

No presente contexto, essa característica subjacente do nosso mundo midiático distorceu a capacidade de muitos no Ocidente calcularem as consequências potenciais de nossas ações políticas e militares. Enquanto a Rússia na certa está zombando de nossa “ação militar cinética” ao se referir à sua guerra como “operação militar especial”, parece que só somos capazes de usar a palavra “guerra” para designar coisas como “guerra informacional” e (como Bruno Le Maire chamou) “guerra econômica e financeira total”. No mundo de gabolice na internet, tudo é uma amostra grátis da “guerra de verdade” — um cenário no qual podemos, acidentalmente, nos colocar num estado de “guerra de verdade”.

Tensões não resolvidas

Por ora, o Setor Americano da internet parece ter alguma unidade. Guiado por contas anglófonas que fazem memes para a guerra informacional, o Setor Americano fomentou uma mensagem bem coesa da iminente derrota da Rússia e da necessidade urgente de mais envolvimento militar ocidental.

Mesmo dentro do Ocidente, porém, nem todos os atores políticos são tão alheados quanto a elite americana. O retorno da guerra ao continente europeu era palpável não só nas nuvens, como no chão. Decerto, tanto os americanos quanto os europeus experimentaram uma nova apreensão quanto à possibilidade de um conflito global e de um novo aumento no preço das commodities. Mas na Europa central e no Leste, os efeitos da guerra foram imediatos, com mais de três mil refugiados chegando aqui em Budapeste a cada dia. Assim, a Polônia também forçou o Ocidente a esclarecer suas intenções com a entrega de jatos às bases norte-americanas na Alemanha.

No Setor Americano, porém, as empresas do Vale do Silício podem, cada qual, decidir (seguindo as pressões públicas que suas próprias plataformas facilitaram) “tomar uma medida” e remover a Rússia da internet global. Todas as principais plataformas desmonetizaram a mídia estatal russa e alteraram seus algoritmos para tirar a prioridade dos resultados da mídia russa oficial. Tais eventos naturalmente levantam a questão de se essas empresas mais tarde decidirão impor punições similares a outras nações: na África, nas Américas, no Oriente Médio ou até na Europa.

Embora os sonhos de “conectividade global” tenham se espatifado, resta saber se o Setor Americano da internet poderá manter alguma unidade interna. Até aqui [março de 2022], os poderes europeus têm sido mais sensíveis às suas respectivas situações geopolíticas: cada um dos poderes centro-europeus reagiu de uma maneira levemente diferente, refletindo suas diferentes relações com a Rússia. A Alemanha começou a se rearmar de imediato, os poderes escandinavos reavaliaram suas posições militares e sobrou a França para mediar a discussão com a Rússia, já que muitos lá se lembram de sua independência pretérita frente aos compromissos mais amplos da OTAN.

Por ora, a absorção dos poderes ocidentais pelo “bloco ocidental da internet” não coloca uma ameaça imediata ao problema interno do Setor Americano. Mas qualquer país que possa divergir, até um tiquinho, da política externa dos EUA tem novas razões para reavaliar a independência e a resiliência de sua tecnologia. A Rússia começou a planejar sua própria “internet soberana” há quase quatro anos. Países europeus, em particular, terão de pensar no grau de conforto com que vivem na nuvem do Setor Americano.

Checkpoint Charlie

Durante a Guerra Fria, o Checkpoint Charlie simbolizou a entrada no Ocidente livre e unificado. Nossa entrada no “Setor Americano” da internet nova e multipolar irá envolver a quebra de muitas ilusões que afligiram o Ocidente nos últimos trinta anos: desde a neutralidade e o otimismo da (falecida) internet global até a expectativa de que o capitalismo liberal promoveria competição livre e aberta para desenvolver as tecnologias do futuro.

O novo Setor Americano parece unificado por ora. Mas quais são as histórias reais acontecendo dentro dele? Nos próximos meses, a Europa começará a se perguntar se está contente com suas jogadas políticas se tornando um peão na guerra informacional que o Setor Americano hospeda. Nos EUA, teremos que perguntar se a guerra informacional que nossas plataformas facilitaram não está, em vez disso, nos impedindo de tomar decisões claras e responsáveis.

Despido de suas ilusões fundantes, o futuro da internet do Setor Americano pode ser mesmo curto.

Gladden Pappin é teórico político da Universidade de Dallas e Professor Visitante no Matthias Corvinus Centrum, em Budapeste. Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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