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Passar tempo com a família e contato com a natureza são essenciais para aumentar a qualidade de vida
Imagem ilustrativa.| Foto: Shutterstock

Nas últimas décadas, o Brasil experimentou um importante consenso entre a esquerda e a direita acerca da família, especialmente aquela reconfigurada após o divórcio. Esse consenso está sendo ameaçado por uma ideologia revanchista que instrumentaliza as crianças, infantiliza as mulheres e desumaniza os homens. Para além disso, ataca a unidade familiar e põe em risco a coesão social.

O agora velho consenso se expressava em três pontos fundamentais: 1) crianças são sujeitos de direito e não objetos; 2) mulheres são livres para serem o que elas quiserem e não podem ser reduzidas ao exercício da maternidade; 3) pais (homens) são fundamentais na criação dos filhos, resultado já sedimentado nas ciências sociais e da saúde. Esse consenso movimentou o Congresso Nacional e também o Poder Executivo: para os progressistas igualitaristas, leis como as da guarda compartilhada (Lei 11.698/08 e Lei 13.058/2014) e a de combate à alienação parental (Lei 12.318/2010) contribuiriam com o saudável desenvolvimento infantil e com a emancipação da mulher; para conservadores de boa estirpe, essas leis também garantiriam a participação dos pais no cotidiano dos filhos e a consequente manutenção dos laços familiares.

Alienação parental não é um tema popular, mas o fenômeno da alienação e sua principal motivação quase todos conhecem.

A esquerda identitária, que enxerga a sociedade como um grande palco de remanejamento de ódios mútuos, e a direita reacionária, que não enxerga absolutamente nada, resolveram se unir para jogar a mulher na cozinha e o homem para fora de casa. Para tanto, as crianças precisam voltar a ser objetos. Querem romper com o velho consenso. O primeiro cavalo de batalha é a Lei de Combate à Alienação Parental, mas o próximo será a guarda compartilhada.

Alienação parental não é um tema popular, mas o fenômeno da alienação e sua principal motivação quase todos conhecem. Na Mitologia Grega, Medeia mata seus próprios filhos para que o pai deles, Jasão, sofra com a perda. Em 2021, na cidade de Lajeado/RS, uma mãe decidiu cometer suicídio e assassinar a filha forjando um acidente de trânsito. Antes de jogar o próprio carro contra um caminhão a mulher gravou um vídeo de despedida e forçou a filha a se despedir do pai. Brutal violência psicológica que precedeu a violência física. Quem aliena também agride. Felizmente a menina sobreviveu. A mulher, que ficou ferida e foi internada, acabou sendo presa, denunciada e condenada a mais de 19 anos de prisão por tentativa de homicídio. Ela não aceitava o fim do relacionamento e queria punir o pai da criança. São extremos, mas eles expõem o ímpeto que provoca milhares de casos de alienação parental nas varas de família do país.

A esquerda identitária enxerga a sociedade como um grande palco de remanejamento de ódios mútuos.

A alienação parental é um fenômeno complexo, mas identificável. Em artigo publicado no ano passado pela Associação Americana de Psicologia (APA), Psicologia do Desenvolvimento e o Estatuto Científico da Alienação Parental, os autores elencam inúmeras dimensões desse fenômeno social, entre elas difamação, manipulação emocional, adultificação e parentificação, interferência na comunicação, rapto de criança e agressão legal administrativa. Além disso, agrupam inúmeros estudos científicos que relatam associações diretas entre níveis de exposição à alienação parental e depressão, menor satisfação com a vida, e sintomas de transtorno de estresse pós-traumático para crianças e pais alienados. Citam também estudos que relataram uma conexão entre a alienação parental e ansiedade. Por fim, concluem que “alienação parental atende a três critérios de um campo de investigação científica em amadurecimento: uma literatura em expansão, uma mudança para estudos quantitativos e um crescente corpo de pesquisa que testa as hipóteses geradas pela teoria.”

No debate científico, especialmente na academia americana, a alienação parental é um campo fértil de pesquisa e produção. No Brasil, porém, ganhou força uma fake news que afirma que a alienação parental não tem suporte científico, sendo insuflada por uma pseudociência. Essa falácia é facilmente refutável.

No passado, os primeiros pesquisadores do fenômeno acreditavam que ele poderia ser uma síndrome, a SAP. Porém, com a evolução das pesquisas o termo “síndrome” perdeu espaço, pois nem sempre os atos de alienação, que supostamente conduziriam a uma síndrome, têm a criança como alvo principal. Há casos que não envolvem manipulação psicológica direta. Pode haver apenas afastamento físico, como mudança de endereço, omissão de informações escolares, ou intenso litígio judicial que promove a deterioração da relação da criança com o genitor alienado. Por outro lado, o resultado dos atos de alienação na formação psicológica da criança podem ser muito diversos, como já citado, desde depressão a sintomas de transtorno de estresse pós-traumático, ultrapassando assim os limites de uma síndrome.

Para o maniqueísmo identitário só existe o patriarcado, a cruel dominação dos homens sobre as mulheres. São duas tribos em guerra permanente e inevitável.

Os críticos da Lei de Combate à Alienação Parental (LAP) argumentam que se a alienação não possui menção nos manuais de diagnóstico, então o fenômeno não existe. Isto é um raciocínio equivocado, grosseiro e falacioso. Ignoram a pesquisa científica contemporânea sobre o tema e descartam a farta produção jurisprudencial reconhecendo os atos alienadores. São turistas. Falam da aplicação da lei sem nenhum conhecimento de causa. Invertem a realidade. Fantasiam. A lei brasileira não trata de nenhuma síndrome; ela cita atos de alienação (que todos conseguem reconhecer) e vai além disso, promovendo uma parentalidade positiva (art. 7°), estabelecendo o foro competente para julgar ações de convivência (art. 8°) e condenando “qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor” (art. 6°).

Os críticos da LAP não estão preocupados com o caráter científico do fenômeno – que eles sabem que existe! O ranço está em outro lugar: a LAP desafia a lógica maniqueísta que o identitarismo está impondo ao país. Para a LAP, o bem-estar da criança é a prioridade; o respeito aos seus direitos, o ponto de partida. A alienação parental prejudica o desenvolvimento saudável da criança e nega a ela o acesso aos dois núcleos familiares que lhe deram origem e que lhe darão a trilha para o sentido da própria vida. É a identidade mais importante.

Porém, para o maniqueísmo identitário só existe o patriarcado, a cruel dominação dos homens sobre as mulheres. São duas tribos em guerra permanente e inevitável. Nessa visão, as crianças são objetos de pertencimento da mulher e instrumento de luta e resistência. Os homens, por outro lado, são unidimensionais: dominadores perversos. Masculinidade tóxica. Eles não querem exercitar a paternidade ou conviver com seus filhos, querem apenas controlar as mães. Nada além. Nessa perspectiva, a alienação parental deixa de ser condenável para ser desejável. É o mantra do “meu corpo, minhas regras” com uma pequena diferença: a criança já nasceu. É irônico que o senador Magno Malta, que se diz um conservador, esteja defendendo a revogação de uma lei que combate o aborto familiar.

O identitarismo é uma ideologia autoritária, nem mesmo as mulheres são poupadas. Nele não há espaço para desgarrados. Não há mulheres do “outro lado”. Não pode haver. As que existem são todas desumanizadas, apagadas, esquecidas. O identitarismo herdou do marxismo a primazia de libertar as pessoas de si mesmas, violentamente, em campos de reeducação. As mães que sofrem alienação parental; as avós paternas, que sofrem em dobro; as madrastas, cujo esperança de uma vida conjugal feliz foi transformada em um pesadelo por amar o “homem errado”, as irmãs de pais alienados e as filhas... São todas silenciadas pela gritaria identitária.

O ressentimento é o motor político contemporâneo e ele está promovendo uma revolução política silenciosa. O movimento identitário está alterando o ordenamento jurídico brasileiro, inoculando sua ideologia em diversas instâncias, inclusive por vias administrativas, como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ. O documento recomenda que os magistrados ignorem os mais básicos princípios de Justiça para julgar, a priori, com base em preconceito de gênero, contra homens e pais. Quando a via administrativa está parcialmente bloqueada pela legislação, como no caso da LAP, surgem campanhas de fake news para revogar as leis.

No futuro próximo, cumprindo a profecia de George Orwell, veremos homens com medo de mulheres e mulheres com medo de homens e ambos com medo de seus filhos. Dividir para conquistar. É a implosão da família e da coesão social.

Márcio Leopoldo Maciel é formado em Filosofia pela UFRGS e estuda Direito na UFPel.

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