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Hospital São Camilo em São Paulo
Hospital São Camilo em São Paulo| Foto: Divulgação

A liberdade religiosa, uma das primeiras liberdades fundacionais da civilização ocidental moderna, esteve nos noticiários recentes depois que o Hospital São Camilo, em São Paulo, se negou a implantar um dispositivo anticoncepcional em uma paciente, sob o argumento de que, por convicção religiosa, não realiza procedimentos contraceptivos, a não ser em caso de risco. Após a divulgação do ocorrido, parlamentares provocaram o Ministério Público para que investigasse o assunto, sob o argumento de violação ao direito a saúde. Virtualmente, todos os órgãos de imprensa do país repercutiram o caso. Não faltaram especialistas em direito médico e em direito constitucional para afirmar que a instituição não teria o direito de recusar, por política interna, um procedimento, pois a constitucionalmente protegida escusa de consciência por motivos religiosos seria direcionada exclusivamente ao médico e não à instituição.

Será mesmo que instituições não possuem o direito de atuar conforme suas convicções religiosas, que são inerentes à sua crença, considerando que se trata de um hospital confessional? Será que uma ordem religiosa, no exercício de suas ações, não pode mesmo estabelecer, de antemão e genericamente, para todos seus associados, uma política com base em suas próprias crenças religiosas?

Para responder a tal questionamento, primeiro, precisamos refletir, do ponto de vista do direito constitucional, sobre o que são liberdades. Um modo de responder a tal questionamento é dizer que liberdades são esferas de imunidades, ou seja, são espaços onde as lógicas que regem outras esferas, as demais pessoas e, especialmente, o Estado, não podem interferir. É justo dizer que sou livre, portanto, quando não estou sofrendo interferências externas. E o nosso direito constitucional, assim como a cultura ocidental, defendem, desde seus primórdios, tais liberdades. Inclusive, a liberdade religiosa, do ponto de vista histórico, é uma das primeiras a se consolidar num contexto de guerras religiosas na Europa, por meio da ideia de separação Igreja/Estado.

Sem a instituição, não existe a profissão. É inerente à própria ideia de liberdades que haja uma proteção à instituição pela qual aquela liberdade é exercida.

Quando olhamos mais detalhadamente para as diferentes liberdades constitucionalmente asseguradas, vemos que todas elas possuem uma dimensão individual e uma dimensão institucional. A liberdade de cátedra certamente protege o professor nas suas falas, pensamentos e pesquisas, mas também protege a instituição universitária como local de realização da atividade acadêmica. Assim vemos que universidades possuem regramentos próprios que são inerentes à sua esfera de imunidade. O mesmo ocorre com a liberdade de imprensa, para pegar outro exemplo. De que adiantaria haver uma proteção à pessoa do jornalista se não houvesse também uma proteção ao veículo de comunicação? O professor existe em função da universidade, da mesma forma que o jornalista existe em função do veículo de imprensa. Sem a instituição, não existe a profissão. E sem o exercício da atividade não existe sequer a necessidade de proteção daquela esfera de liberdade. Portanto, é inerente à própria ideia de liberdades que haja uma proteção à instituição pela qual aquela liberdade é exercida.

Naturalmente, o mesmo ocorre com a liberdade religiosa: a objeção de consciência, que é apenas um aspecto da liberdade religiosa, obviamente é, prima facie, exercida pelo indivíduo, de modo que um médico, para pegar o caso concreto, poderia alegar escusa de consciência para negar a realização de um procedimento específico. Mas essa é apenas uma faceta da liberdade religiosa. Veja que aquele médico não pode se identificar como “católico” sem que exista a instituição “Igreja Católica”. Nenhuma religião é exclusivamente pessoal, ela sempre é a manifestação de uma comunidade de membros, que se identificam e vivem daquele modo. O modo de vida demanda uma instituição que possua regras de conduta condizentes com aquela visão de mundo específica. Portanto, o direito de liberdade religiosa demanda uma proteção à instituição religiosa que veicula aquela determinada religião.

A religião é um modo de vida. Esse modo de vida é englobante de todos os aspectos da vida daquela pessoa. Não-crentes têm evidente dificuldade de entender isso. Apenas alguém não-crente, como possivelmente é o caso da pessoa que fez a denúncia do Hospital São Camilo, pode dizer que a postura do hospital “é uma maneira muito antiga de pensar e que só com a indignação coletiva e com a denúncia é que as coisas mudam”. A frase foi postada por ela em sua conta na rede social X, com o sugestivo perfil @subversiva. Ora, essa é a postura de quem quer um mundo sem nenhuma religião – o que parece evidente até no nome de sua conta em tal rede social. Ou seja, é a postura de quem não tem absolutamente nenhum apreço pelo constitucional direito de liberdade religiosa. Isso fica claro em outra declaração sua: “se deparar com uma informação dessas em 2024, por causa de religião, me parece um retrocesso muito grande”. Ter uma religião, em pleno 2024, seria um grande retrocesso e para ela isso deveria ser a visão de todas as pessoas. Mas então que se acabe com a liberdade religiosa, oras! Na sua visão, esse direito de professar e viver conforme a fé simplesmente não deveria existir – e esse é, precisamente, o motivo pelo qual ele precisa existir. Fica evidente que, para ela, a crença professada pelo Hospital não poderia ter nenhum espaço na sociedade, pois “é assim que as coisas mudam”.

O problema é que o direito à liberdade religiosa não apenas existe, como é fundante da nossa civilização ocidental. A esfera de imunidade protegida pelo direito de crença existe justamente para que as coisas não mudem. Pessoas crentes não querem mudar suas crenças. Suas crenças são o seu modo de vida, a sua identidade, e a identidade de uma comunidade. A civilização ocidental chegou até aqui justamente por meio do respeito a tais crenças. A essa altura convém lembrar que o Hospital faz esse procedimento (implantação de DIU) em caso de doença grave, como endometriose. Portanto o problema não é com o tratamento em si, mas com a finalidade. No caso também não havia urgência; logo, não se tratava de risco de vida. Era um procedimento completamente eletivo que pode ser feito em qualquer outro local disposto a fazê-lo. Respeitar o direito de crença é respeitar o direito de se negar a fazer algo que viole suas convicções. A tentativa de impor uma ação ativa significa, simplesmente, esvaziar completamente a esfera de liberdade protegida por esse direito.

Esse ponto me parece bastante relevante: pretender que uma instituição – que nada mais é do que uma assembleia de pessoas congregadas para uma mesma finalidade e, portanto, pasmem, são pessoas – exerça uma ação positiva contra sua convicção religiosa é uma violência moral. Obrigar, coercitivamente, a tomada de uma ação ativa é dominar completamente o intelecto da pessoa, de modo a lhe descaracterizar em sua dignidade enquanto ser humano. Justamente por isso que a escusa de consciência é, em grande medida, o direito de se abster. Ninguém está dizendo que a paciente ficará sem o DIU; apenas se está dizendo que aquele grupo de pessoas, em vista de sua fé, se abstém de fazer a implantação em seu estabelecimento. Consigo ver o direito interferindo legitimamente na esfera de liberdade religiosa para restringir uma ação ativa considerada contrária ao direito, mas será que o direito serve para que até o direito de abstenção seja tomado dos cidadãos?

Um médico não pode se identificar como “católico” sem que exista a instituição “Igreja Católica”. Nenhuma religião é exclusivamente pessoal, ela sempre é a manifestação de uma comunidade de membros, que se identificam e vivem daquele modo.

Desse modo, parece bastante claro que a instituição possui, sim, o direito constitucional de estabelecer – por meio das pessoas que a integram – regras de conduta e de se negar, institucionalmente, por escusa de consciência, a realizar determinado procedimento – mesmo que tal procedimento seja civilmente autorizado na sociedade. Ninguém espera que o Estado determine a um Padre que realize um casamento homoafetivo dentro de uma Igreja apenas porque o direito brasileiro reconhece a união homoafetiva. Aqui não se trata apenas de uma escusa de consciência daquele Padre enquanto indivíduo, mas sim de uma proteção à liberdade religiosa e de crença que é direcionada a toda uma instituição religiosa, por meio das deliberações de todos os seus membros. Ou, para pegar um exemplo que me toca como advogado: suponhamos que eu atuasse na área trabalhista (o que não é o caso) e em meu escritório eu quisesse, por convicção, atender apenas empregadores. Em princípio, ninguém veria problemas com isso (espero). Mesmo que o direito garanta ao empregado assistência judiciária, o Estado não pode impor a mim que defenda empregados também contra minha vontade, mesmo que haja o direito de defesa para todos. Da mesma forma, a paciente pode ter o direito de implantação do DIU, o direito de fazer seu planejamento familiar, ou o que quer que seja dentro da política pública de saúde. Então que o faça nos estabelecimentos que estão dispostos a fazer, em vez de exigir uma violenta mácula nas convicções morais e religiosas de todo um grupo de pessoas apenas porque possuem “uma maneira antiga de pensar”.

Veja que pretender que o Estado regre os procedimentos realizados dentro de uma instituição confessional é uma invasão, tirânica, da esfera de liberdade garantida às instituições religiosas. É querer usar critérios civis onde os critérios são religiosos. E o contrário também seria verdadeiro, não? Aqueles que, hoje, querem impor uma ação positiva violadora de uma crença religiosa a uma instituição confessional com o argumento de que se trata de algo civilmente autorizado incoerentemente não estão dispostos a aceitar um argumento religioso no debate público civil.

A expressão pode soar forte, mas do ponto de vista da teoria política, tirania é sim o termo técnico adequado. A verdade é que invasões de esferas de imunidade são justamente o que chamamos de tirania: é tirânico querer vencer uma eleição apenas porque se tem mais dinheiro, pois a esfera política e a econômica tem valores e lógicas diversas. Da mesma forma, é tirânico querer admiração estética em função, por exemplo, da força, e não em função da beleza, pois a arte tem uma lógica diferente daquela que rege a dominação e o temor. Logo, é tirânico querer impor a uma instituição religiosa a prática de determinado ato apenas porque ele é civilmente autorizado. A reserva de consciência serve justamente para que crentes possam se abster de agir caso aquela ação represente violação de sua consciência e isso necessariamente inclui a ordem religiosa que é feita, pasmem, de pessoas! Então, na prática, a verdade é que a ordem de se conformar à política pública defendida pelos constitucionalistas ouvidos nas reportagens não estaria sendo dada apenas à instituição, pessoa jurídica e abstrata, mas sim aos membros dessa instituição – que são pessoas físicas específicas e têm o direito de abstenção e objeção de consciência como qualquer cidadão. Em última análise, o que eles estão dizendo é: vocês, religiosos, pessoas físicas concretas que fazem parte da diretoria da uma instituição, devem decidir de outro modo (ou seja, devem agir ativamente no mundo), mesmo que isso viole a consciência e a crença religiosa de vocês. Contudo, e esse ponto é nevrálgico, se não há direito de decidir a política interna de abstenções da instituição com base em valores religiosos, então a verdade é que não há mais direito algum nessa esfera.

“A tirania consiste em querer ter por uma via o que só se pode ter por outra. Há deveres diferentes face aos diferentes méritos”, dizia Pascal, um pensador dos primórdios da modernidade ocidental. Bom seria o cenário onde nossos constitucionalistas contemporâneos tivessem a mesma clareza de pensamento. Ao violar as esferas de liberdade, em verdade, estamos acabando com as conquistas da modernidade tão prezada por aqueles que, justamente, se apresentam como seus supostos defensores.

Bruno Irion Colleto, advogado, é doutor em Direito pela UFRS e mestre em Ciência Política pela New School for Social Research.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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