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ADI 6622 sobre missões religiosas em terras indígenas foi distribuída para o ministro Barroso
Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, em Colniza (MT). Imagem ilustrativa.| Foto: Vinícius Mendonça/Ibama/Arquivo

Morreu Aruká, o último homem da etnia Juma, pertencente à família linguística Tupi-Kagwahiva. Os remanescentes da tribo moravam numa das aldeias Urueu-wauwau no estado de Rondônia, que é um grupo de língua semelhante. Como vários outros grupos amazônicos, os Juma foram diminuindo em número, sofrendo com doenças e guerras com outras tribos e com a população ribeirinha. A integração com outro grupo de língua semelhante, mas com uma população um pouco mais robusta, era a solução natural. Em 2012 a “tribo” Juma, as filhas de Aruká que se casaram com homens da tribo Urueu, seus filhos e netos foram transferidos de volta para sua “terra original” pelo governo Dilma, em mais uma das respostas políticas atrapalhadas daquela administração, para “salvar” a população indígena. Por salvar aqui leia-se jogar 18 pessoas, a maioria crianças, no meio da selva sem acesso à assistência de saúde de nenhum tipo, a não ser quando chamada por rádio, apenas para garantir a demarcação de uma grande reserva indígena em seu nome.

Até depois da morte foi negado a Aruká o direito de ser um indivíduo. Em vez de ser um pessoa, o velho Juma continua sendo, como a maioria dos indígenas, um mero símbolo, um instrumento para empurrar a agenda que nos interessa no momento, agora a Covid-19. E assim foi noticiada a sua morte, mais uma morte por Covid, alertando para a precariedade da condição de saúde dos indígenas, ou seja, como mais uma falha crassa do atual governo.

Acontece que o problema é bem mais antigo. Nós, brasileiros, sofremos de uma culpa histórica em relação aos povos indígenas e somos quase incapazes de analisar a situação sem o viés implícito que funciona como racismo às avessas. Idealizamos os índios, criando, para substituir os seres reais de carne e osso, uma alegoria que nos permite elevá-los a uma condição supra-humana, além do bem e do mal, da morte e da dor. Quando falamos deles não falamos de gente, de indivíduos e de problemas reais que gente como nós tem, mas falamos sempre de uma abstração coletiva e mística. Já há décadas Júlio Cezar Melatti denunciava a antropologia nacional como culpada da criação de uma alteridade superlativa para caracterizá-los. Marisa Correa, outra pesquisadora, escreveu um ensaio sobre a história da disciplina no Brasil com o título iluminado Traficantes de Excentricidades, em que ela discute esta mitologizaçao da imagem dos indígenas e aponta como culpados os próprios antropólogos.

E de onde vem essa ideia da cultura como uma concepção abstrata, determinante do comportamento humano e onipresente? O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss ocupou uma cadeira na USP quando jovem, de 1935 e 1939. Lévi-Strauss veio a se tornar depois um dos maiores intelectuais do século 20, deixando sobre nossos pensadores tupiniquins a sua sombra majestosa. A visão da população indígena como “sociedades congeladas” ou “fósseis vivos” pode ser uma herança dele e de Frans Boaz, seu contemporâneo, grande influência na obra de Gilberto Freyre. Apesar das mudanças teóricas das últimas décadas, os humores ideológicos que se seguiram continuaram operando debaixo de pressuposições semelhantes. O excesso de subjetivismo presente na antropologia atual demove os indígenas da condição de seres humanos, tornando-os quase objetos, figurantes no show de entretenimento teórico da academia. A distância entre nós e eles é tão grande que até compaixão se torna impossível. O sofrimento brutal dessas sociedades, deixadas na “proteção” do isolamento pelo governo, nos passa despercebido porque não é humano.

Mas o que a humanidade perde com o desaparecimento desses grupos? Essa resposta vamos achar na ciência da cognição e não na antropologia. É na língua que a codificação cuidadosa do conhecimento de grupos humanos sobrevive; em seu léxico, gramática, relações semânticas, encontramos a chave para a mente humana. Os estudos sobre a cognição humana parecem ter levantado a âncora nos últimos anos. Uma das razões é o progresso da neurociência, mas uma outra, talvez tão importante, foi a alforria que a linguística recebeu do domínio dos pressupostos da “Gramática Universal” de Noam Chomsky. O trabalho de um pesquisador considerado hoje um dos mais importantes cientistas norte-americanos, e que se educou na nossa boa e velha Unicamp, tem uma grande parcela de responsabilidade nesse progresso da linguística. Daniel Everett morou durante muitos anos com os Pirahã, do Maici, no Amazonas. A fantástica língua dos Pirahã desafia pelo menos dois dos mais importantes universais linguísticos de Chomsky. Até o trabalho de Everett ser conhecido do meio científico, presumia-se que todas as línguas humanas tinham números e todas elas tinham o que se chama de “recursividade gramatical”, ou a habilidade de embutir uma frase dentro da outra. Pirahã não tem nem uma coisa nem outra. Depois de muitas décadas de investigação que envolveram especialistas de várias áreas, da fonética à psicologia, a caixa-preta cognitiva dos Pirahã foi aberta a nós, vis mortais.

A pequena sociedade Pirahã se organiza sem precisar contar números precisos, mas usa apenas palavras para quantidades relativas. A palavra que significa “pouco”, despercebidamente para alguém de fora, podia parecer significar “um,” mas o ato de contar e de se importar com quantias precisas nunca foi parte do dia a dia deles. Outra novidade interessante da língua Pirahã é a habilidade de apresentar todas as situações sempre no presente imediato, como se nada mais importasse, a não ser o que acontece a meu redor agora. Sem dúvida essa é uma maneira mais livre de se viver, e que tem funcionado para os Pirahãs há muitos séculos.

Ao contrário do que propõe Chomsky, é possível que a capacidade linguística não seja um chip que pré-formata a linguagem, mas sim uma habilidade desenvolvida como todas as outras, aprendida no dia a dia na vida em sociedade, como defende Everett. Sendo assim, é o estudo cuidadoso das línguas indígenas que tem o poder de abrir essas janelas cognitivas para a humanidade, e não, como defendem alguns, o aprisionamento de seres humanos na jaula do construto abstrato que é a cultura.

No Brasil, desde o nosso primeiro século, o melhor trabalho linguístico sempre foi realizado por missionários. A Arte de Grammatica da Lingoa mais falada do Brasil, estudo do Tupinambá feito pelo Padre Anchieta, apesar de ser um trabalho extremamente bem feito quando julgado pelos melhores padrões da filologia da época, foi durante muitos anos considerado por “especialistas” brasileiros como um trabalho sem valor que impunha padrões do latim à língua brasílica. Nada disso. Um de nossos maiores linguistas, Aryon Dall’igna Rodrigues, venceu o preconceito de sua classe e, quando fazia seu doutorado em Hamburgo, na Alemanha, em 1950, usou a gramática de Anchieta para propor uma reconstrução da língua Tupinambá, redimindo o gênio do padre de séculos de “cancelamento” que lhe pesavam desde a era pombalina. Aryon reconheceu que é graças ao trabalho brilhante e minucioso do jesuíta que nos é possível hoje conhecer uma versão daquilo que era a língua mais falada na costa brasileira. O linguista seguiu seu trabalho na reconstrução histórica de todo o tronco Tupi, trabalho de uma vida, também graças à sua parceria com os missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL), o grupo que trouxe Daniel Everett ao Brasil e o levou com sua família aos Pirahã, e que é possivelmente a instituição com o maior acervo científico sobre línguas indígenas do país.

A falácia propagada ad nauseam no Brasil sobre as missões é que estas são o único grupo que muda o estilo de vida dos indígenas, ferindo-os diretamente em sua cosmovisão. A sociedade em geral tende a acreditar nisso por desconhecer a natureza do que se chama de “cultura” em antropologia. Na verdade, todos em contato com os povos indígenas mudam sua cosmovisão, porque não existe cultura humana estática. Todos os grupos humanos sofrem constantes mudanças em sua maneira de ver e se relacionar com o mundo. A Funai é a maior causadora de mudanças forçadas às sociedades indígenas. Eli Tikuna, líder indígena, uma vez disse numa reunião em que se discutia como levar mais médicos e enfermeiros para as aldeias mas distantes: “Não queremos que vocês nos enviem mais gente de fora, queremos formar nossos próprios médicos e enfermeiros”. Como qualquer pai, Eli quer que seus filhos tenham um futuro que inclua educação e saúde. Para nossa política indígena, até hoje índio só é índio quando pelado na mata ou quando isolado em aldeias-favela dependentes das benesses da padroeira Funai.

Infelizmente, as comunidades, quando passam a ter contato com a máquina burocrática que estabelece sobre eles um controle absoluto e com a falta de respeito a seus interesses e direitos da parte do governo, passam a conhecer que são “meros índios”, ou seja, seres sem direito à liberdade, autonomia nem individualidade, condenados a viver um estilo de vida fossilizado, que em muitos casos acaba sendo a sua sentença de morte. O caso dos Juma é um desses. Se a união do pequeno grupo aos Urueuwauwau foi um processo orgânico e pelo qual passam muitas tribos menores, unindo-se para garantir sua sobrevivência, o isolamento geográfico compulsório do grupelho desprotegido, para garantir a demarcação de mais uma reserva gigantesca, não foi.

Vem de um padre dominicano a primeira afirmação sobre a humanidade plena dos povos americanos. Numa discussão com a coroa espanhola, Antonio de Montesinos, num sermão pregado contra os espanhóis conquistadores em 1511, disse: “Diga-me por quais direitos e qual autoridade vocês mantêm estes indígenas tão oprimidos e subjugados. Não são eles seres humanos como vocês, não estão vocês obrigados a amá-los como a vocês mesmos?”

No triste caso dos Juma, podemos perguntar mais uma vez aos responsáveis por nossa política indigenista: Serão eles seres humanos como nós? Merecerão eles assistência de saúde e educação como os seus filhos e filhas? Digam-me por quais direitos e com qual autoridade vocês mantêm esses indígenas tão oprimidos e subjugados!

Bráulia Ribeiro é mestre em Religião pela Universidade Yale e em Linguística, doutoranda em História e Teologia Política na Universidade St. Andrews (Escócia), pesquisadora e agente social na área de etnolinguística e antropologia cultural.

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