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Disse o filósofo Renan: "Uma nação é uma alma, um princípio mental. Duas coisas que são na realidade uma e a mesma, constituem esse princípio. Uma delas é o repositório de memórias, a outra é o acordo atualmente em vigor, o desejo de viver juntos... Uma nação pressupõe um passado, mas o passado é resumido em um fato tangível: o compromisso, o desejo de continuar a viver em comum".

Uma nação pressupõe um passado e esse passado deve servir para que seus filhos tenham orgulho de seus ancestrais e procurem imitá-los. E para que não esqueçam os erros e crimes cometidos por eles para não continuar a praticá-los. Mas nunca se construirá uma nação se, a cada passo, aqueles que foram ou se consideram injustiçados no passado quiserem imputar aos herdeiros daqueles que real ou supostamente infligiram humilhações ou sofrimentos aos seus pais e avós, a responsabilidade eterna por isso. Pecado original só existe um e já teremos de padecer a vida inteira neste vale de lágrimas para tentar purgá-lo.

Minha família – a julgar pelos registros que conheço – nunca teve escravos e é muito provável que, em certo momento de nossa ancestralidade, o sangue dos brancos, dos negros ou dos índios tenha se misturado. E sou suficientemente informado para conhecer as misérias a que os africanos e seus descendentes foram submetidos no Brasil no passado e mesmo hoje. Mas não aceito qualquer parcela de culpa coletiva pelas misérias dos escravos e de seus descendentes. O que faço é não repeti-las e lutar para que não se repitam. Portanto, não considero razoável que alguém que, no século XX, tenha comprado um pedaço de terra com o suor de seu trabalho e descubra que naquele local existiu um quilombo durante o período da escravidão, tenha sua propriedade desapropriado e seja relocado como pretende o projeto da Lei de Igualdade Racial. Nem que o princípio do mérito independentemente de raça, credo ou filiação política para fazer parte dos quadros do Estado, a "oportunidade aberta a todos os talentos" que vivo defendendo neste espaço, seja substituído por um sistema em que o funcionalismo público será composto de grupos proporcionais à sua representatividade étnica na população total como pretende também o mesmo projeto de lei.

Sou filho e irmão de militares e tenho disso enorme orgulho. Nem eu, nem meu pai, nem meus irmãos torturamos ninguém nem compactuamos com a tortura de ninguém. Fazemos parte da grande família verde oliva que pode se orgulhar da sua contribuição para o engrandecimento do país ao longo de sua história e não do pequeno grupo que emporcalhou a alma das forças armadas com atos de banditismo estatal. Por isso, também não acho razoável que os militares de hoje e os de ontem que não participaram da barbárie nem compactuaram com ela carreguem a vida toda a culpa de seus colegas. Pecado original, repito, basta um e não custa lembrar que o barbarismo não esteve ausente em nenhum dos grupos que se digladiaram durante aquele período.

Meu avô Belmiro Valverde passou na cadeia sete anos e meio dos 15 a que foi condenado pelo Tribunal de Exceção por ter participado do que os jornalistas adoram chamar de "pusch" integralista. Aliás, no integralismo – que freqüentemente é lembrado como o representante nacional do fascismo italiano (os ignorantes o associam também ao nazismo, o que nenhum historiador digno desse nome ousou fazer), estava em boa companhia: dom Helder Câmara, Miguel Reale, San Tiago Dantas, Câmara Cascudo, Augusto Frederico Schmidt, Gerardo Mello Mourão, Vinícius de Moraes (ele mesmo, o da Garota de Ipanema...), José Lins do Rego, Roland Corbusier, Álvaro Lins e metade da intelectualidade brasileira. Apanhou da polícia de Felinto Müller, foi mandado para a Ilha de Fernando de Noronha, que ainda não era paraíso dos ecologistas, e sim presídio, e ficou um ano isolado da família e de qualquer visita. Minha avó teve de sair da casa em que morava para alugá-la, pois ficou sem renda alguma. Por isso, me causa estranheza que, ao lado daqueles que tiveram sua vida realmente destroçada pela intolerância e pela prisão, se abriguem no seio generoso da viúva milhares de pessoas que hoje recebem pensões ou compensações financeiras pelas carreiras que poderiam ter feito, os cargos que poderiam ter ocupado. Como disse Millôr Fernandes, para esses – que são muitos – a luta política foi um investimento.

Quando meu avô voltou do Presídio da Ilha Grande, reabriu seu consultório e escreveu em seu diário: "Reinicio hoje minha clínica. Confio em Deus". Nunca perdeu um minuto de seu tempo para ficar remoendo os sofrimentos por que havia passado. Nem nunca alguém cogitou pagar-lhe alguma coisa por haver tentado derrubar o governo e falhado.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do mestrado em Organizações da FAE Business School.

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