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| Foto: André Borges/Agência Brasília

A primeira ação do atual governo foi a assinatura da Medida Provisória 727. Era o 12 de maio de 2016 e o então vice-presidente editou ato privativo do presidente da República (vide Constituição Federal, artigo 84, c/c artigo 62). Afinal, o Congresso Nacional havia afastado a presidente da República para o julgamento do impeachment e o vice estava no exercício da Presidência. Nessa condição, praticou ato normativo primário, normalmente proibido aos vices. A exceção se multiplicou em duas: a medida legislativa, temporária e de eficácia imediata, foi editada pelo presidente interino. O momentâneo a prescrever o provisório. Em termos de Direito Constitucional, é exótico. Ainda assim, a vida seguiu em frente.

Mas por que tratar desse evento duplamente excepcional num artigo a respeito da nova onda de privatizações federais? Por uma razão simples, que demonstra a importância de tal projeto de transferência de atividades do setor público da economia à iniciativa privada. Afinal, a Medida Provisória 727, posteriormente convertida na Lei 13.334/2016, criou nada mais nada menos do que o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). É disso de que estamos falando quando tratamos das medidas anunciadas pelo governo federal neste agosto de 2017.

Em outras palavras, o primeiro ato do novo governo foi a criação de novo e diferenciado programa de parcerias público-privadas, cuja aplicação foi paulatinamente crescendo desde então e, agora, experimenta intensidade toda especial. A legislação, nada obstante o seu modo de nascer, é de alta qualidade técnica. Traz inovações fundamentais. Logo, não estamos a tratar de qualquer atitude governamental, mas de um dos eixos estruturais do governo, do seu ponto de partida, do seu marco zero. Prestemos atenção nisso.

É preciso que o modelo concessionário a ser adotado assegure o pleno atendimento das necessidades coletivas

Com efeito, não deveria surpreender o anúncio de ampla série de medidas de privatização em setores públicos relevantes. Mas, ainda assim, os mercados se agitaram. No dia 22 de agosto, o ministro das Minas e Energia declarou o intuito de desestatização da Eletrobrás. Isso já implicou noticiário intenso (e a significativa valorização das ações na bolsa). Porém, em menos de 24 horas, o Conselho do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), dirigido pelo presidente da República, divulgava a venda de 57 ativos em vários setores, como aeroportos, rodovias, portos e energia. Não é pouca coisa. São ações que pretendem, simultaneamente, diminuir os desembolsos públicos (custos administrativos) e gerar caixa (preços de outorga como critério de seleção do futuro parceiro privado). A imprensa não tardou a apelidar tais medidas de “saldão”, “liquidação geral” e “Black Friday” de ativos federais. Também não foram poucos os gritos contrários a tal anúncio massivo de projetos de privatização. No entanto – e exageros à parte –, há algo de muito interessante nesses atos governamentais.

Dentre as medidas anunciadas, há projetos em setores nos quais a participação privada já está bastante consolidada, como é o caso dos terminais portuários e rodovias. Por outro lado, fato é que a proposta também abrange a venda de ativos estratégicos, o que chama a atenção. Em especial, a alienação da Eletrobrás, a maior empresa de energia elétrica do país, que atua em todos os segmentos da cadeia produtiva, sendo responsável por mais de um terço da geração e mais da metade da rede de transmissão; a participação da Infraero nos maiores aeroportos brasileiros (100% de Congonhas e 49% de Guarulhos, Galeão, Brasília e Confins); ou mesmo a Casa da Moeda, instituição de mais de 300 anos, que exerce uma atividade que por muito tempo foi considerada essencial à noção de Estado: a cunhagem de moedas e impressão de cédulas (nada obstante a eventual contratação de empresas estrangeiras para tais atividades).

Não estamos a falar de quaisquer privatizações, portanto. Nem em termos qualitativos nem quantitativos. O que se adequa à racionalidade do PPI, que foi concebido para a diferenciação de projetos de interesse nacional estratégico, selecionados pelo próprio presidente da República, que dirige os trabalhos e as escolhas da comissão. Demais disso, os projetos selecionados para o PPI devem ser tratados como prioridade pela administração pública (e órgãos de controle, bem como autoridades regulatórias). Em termos objetivos, tais privatizações devem ser lidas como prioridade nacional. Resta saber se existe acervo técnico de pessoal, com maturidade e competência, que permita a implementação de tamanha gama de projetos em curto espaço de tempo. Espera-se que sim.

Leia também:A privatização da Eletrobras (editorial de 24 de agosto de 2017)

Nossas convicções:O princípio da subsidiariedade: menos Estado e mais cidadão

Porém, fato é que o anúncio do “pacote” não foi precedido por debates com a sociedade. Isso certamente será objeto de audiências públicas e da mais ampla publicidade que se espera a tais empreendimentos. Também não houve qualquer informação sobre os modelos de outorga que serão adotados, ou mesmo se haverá reforma dos marcos regulatórios para tais setores. Estas medidas são imprescindíveis para que se coloque o projeto efetivamente em marcha, sob pena de se transformarem em mais um da longa fila de projetos em PowerPoint, que apagam antes de se tornarem realidade. Em verdade e ao que tudo indica, o anúncio da medida antes atende a uma necessidade de curto prazo de caixa do governo para fazer frente ao brutal déficit de 2018 – já dado como certo pelos economistas.

Mas uma coisa é certa: em projetos de privatização (leia-se investimentos) dessa envergadura, esses dados e informações precisam ser construídos, debatidos e maturados. Precisam estar disponíveis e ter plena legibilidade. Afinal de contas, a simples retirada do poder público de setores econômicos não gera automaticamente mais eficiência ou melhoria da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos. Há exemplos recentes de processos de privatização que não alcançaram os resultados esperados, como nos setores de ferrovias, distribuição de eletricidade e rodovias. Porém, ainda que possam ser alvo de críticas, é preciso reconhecer que ao menos estavam inseridos em um projeto de reforma do Estado e envolveram a conformação de um marco regulatório que visava aos interesses futuros do país, como a Lei de Concessões (Lei 8.987/1995).

Por isso, sem adentrar no mérito dos setores e dos ativos escolhidos, é preciso que o modelo concessionário a ser adotado assegure o pleno atendimento das necessidades coletivas, com qualidade dos serviços aos usuários e adequação tarifária. Ao mesmo tempo, deve-se garantir segurança jurídica reforçada e equilíbrio econômico-financeiro em contratos de longo prazo dotados da necessária adaptabilidade a um mundo em contínua transformação. Isso apenas pode se dar com a efetiva participação de todos os atores envolvidos. Por tais motivos, afastado o debate ideológico acerca das privatizações, é importante que, anunciado esse conjunto de intenções, seja estabelecido verdadeiro diálogo com a sociedade para a discussão e reflexão a respeito dessas medidas. Não se pode permitir que uma necessidade imediata de governo prejudique os objetivos de longo prazo da nação.

Egon Bockmann Moreira, advogado, é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Gabriel Jamur Gomes, advogado, é mestre em Direito.
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