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Premidos pela inconfortável necessidade de terem de impor severas mudanças na economia, com sacrifícios impon­­derá­­veis a assalariados e a contribuintes, os governos europeus se entreolham animosos

Um dos maiores avanços políticos de nosso tempo acaba de ser revogado com os modos brandos da diplomacia, às Portas de Brandenburgo, na última cúpula de chefes de Estado da União Europeia: foi para o espaço a livre circulação de pessoas como concebida originalmente, agora mitigada pela discrição de interesses nacionais. Trata-se do mais drástico retrocesso do projeto europeísta, a novidade que surpreendeu o mundo no segundo pós-guerra, a preconizar a era dos blocos econômicos e da integração regional.

O que precipitou o fim do espaço sem fronteiras foi o recente conflito franco-italiano, com a avalanche de refugiados do norte da África, despachados por Berlusconi para além dos Alpes, sob o ardiloso argumento de que já falavam francês. Agora, enquanto o continente retoma fronteiras e ressuscita controles de passaporte, a sinalizar a crise sem precedentes da ordem comunitária, também o drama da moeda comum com suas bombas de efeito retardado assola e assusta. Afinal, como lidar com percalços econômicos dos países insolventes, basicamente os mediterrâneos, mas não apenas eles, obrigados a austeridade esquecida, amolecidos pelas vacas gordas dos fundos comunitários e pelo Estado social à custa da farra do euro.

Se em princípio a livre circulação de pessoas era a ideia força do idealizado constructo comunitário, ainda com mais importância sobreveio a União Europeia de moeda comum, sob a égide do euro, adotado em 2002 e em vigência para 17 de seus 27 membros. Quanto aos membros históricos e de economias mais importantes, todos partícipes da zona do euro, à exceção da Inglaterra de suas libras e de sua rainha.

Pois agora também o euro periclita, enredado no endividamento galopante de importantes atores estatais, devedores contumazes dos bancos dos países hegemônicos, como Alemanha e França. O contágio do organismo europeu como um todo parece inevitável, a partir do uso da mesma moeda, que atua como plasma que circula e dá vida ao mercado comum. A inexistência de bancos centrais nacionais, substituídos por instituição comum, também engessa e limita a possibilidade de soluções tópicas, como a desvalorização da moeda nacional para fomentar comércio e atrair ativos, a tradicional receita de países limítrofes da bancarrota. Enquanto uma geração de líderes europeus particularmente medíocres se digladia em busca de culpados, com devedores buscando a carapuça de vítimas, a lembrar dívidas históricas e sacrifícios pretéritos, todos os sinais de alerta do fracasso econômico se precipitam. Aliás, foi o diretor do Banco Central Europeu, Allan Trichet, um francês que trabalha na Alemanha, já que as fronteiras foram repristinadas e que a instituição está em Frankfurt, quem anunciou sem meias palavras: a luz vermelha está acesa e a unidade europeia enfrenta a maior ameaça, desde sua criação pelo Tratado de Roma, em 1957.

Premidos pela inconfortável necessidade de terem de impor severas mudanças na economia, com sacrifícios imponderáveis a assalariados e a contribuintes, os governos europeus se entreolham animosos, em desarmonia com a tradição de consenso e de busca de soluções eficientes que têm pautado o modelo supranacional adotado. Por esse modelo, transferiram-se importantes parcelas de soberania em troca de bem-estar econômico. Com a soberania mutilada e com dívidas que impõem austeridade e perda de qualidade de vida, o clamor dos gregos que foram às ruas contra o governo de Papandreus se propaga, na livre circulação, agora sim, de graves problemas.

Em meio às declarações desencontradas dos líderes europeus, algumas evasivas, outras desnecessárias, já que o momento não é para rol de culpados e sim para urgentes soluções, apesar dos pesares a Europa do establishment sai em férias, no verão que promete ser o mais quente dos últimos tempos, agora não apenas pelos efeitos deletérios do aquecimento global.

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, professor titular do Instituto Rio Branco, é presidente do Tribunal Permanente do Mercosul.

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