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| Foto: Michel Meynsbrughen/Free Images

Ocupando a fronteira cultural entre a Europa germânica (competição, aprendizagem por comparação, fonte de informação a partir de livros e visão de longo prazo) e a Europa latina (proteção, aprendizagem pela conversação, recebimento de informação de primeira mão e visão de curto prazo), a Bélgica tem três idiomas oficiais, que estão na ordem da população falante nativa na Bélgica: o holandês, o francês e o alemão. Um certo número de línguas minoritárias não oficiais são faladas também. A diversidade linguística da Bélgica e conflitos políticos e culturais são refletidos na história política e no complexo sistema de governo do país, que sedia a União Europeia.

A Bélgica foi o primeiro país continental europeu a entrar na Revolução Industrial e é um dos membros fundadores da União Europeia que apoiam fortemente uma economia aberta e o alargamento das competências das instituições da UE para integrar as economias dos membros do bloco, ao contrário do que acontece no Brasil e no Mercosul.

Apesar de suas divisões políticas e linguísticas, a região correspondente à Bélgica atual tem visto o florescimento de grandes movimentos sociais e artísticos que tiveram enorme influência sobre a arte, cultura e política europeia, assim como na formação de cidadãos formadores de opinião. No Brasil, esses movimentos concentram-se em São Paulo, o mesmo lugar que concentra a arte, as empresas de grande porte, o maior número de universidades (dez vezes mais que no Rio Grande do Sul, por exemplo) e, em consequência, os grandes protestos contra a corrupção. Apesar de a tradição da política de pão e circo para desfocar a população estar mais concentrada nos países da Europa latina, o futebol é um dos esportes mais populares em todas as partes da Bélgica.

O Brasil recebeu muito mais impacto cultural da Europa latina, especialmente de integrantes do famoso “Piigs” – acrônimo que faz um trocadilho com a palavra inglesa para “porcos” e reúne Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, economias que se caracterizam por altos níveis de endividamento e de déficit público em relação ao PIB. A cultura pode ser interpretada como a maneira correta de perceber, pensar e sentir em relação aos problemas. São crenças, identidades, valores e significados que moldam o comportamento e influenciam a percepção do mundo, muito restrita pela política dos governos latinos de manter os preços das passagens áreas muito altos, além do acesso a educação, arte e política.

Apagar o fogo do circo com futebol, carnaval e eventos religiosos é uma estratégia esperta e pouco inteligente, mas bem aceita pela população

Ao contrário da maioria dos estudos que realizam juízos de valor sobre os supostos traços culturais nacionais, vistos como subdesenvolvidos e como causadores do atraso nacional com relação aos países desenvolvidos, busco uma troca inteligente entre as culturas opostas através da experiência compartilhada e ambiente criado, muitas vezes, pelo próprio processo de experimentar as diferenças culturais proporcionadas por um grande evento como a Copa do Mundo. Isso seria muito difícil no caso contrário, devido à posição geográfica do Brasil, ao seu tamanho, ao nível baixo de proficiência em inglês, assim como à chegada tardia das redes sociais, ainda em fase de euforia, mas que mostraram um pouco do mundo para os brasileiros.

No Brasil, o baixo nível de inteligência cultural dos cidadãos é causado porque os brasileiros em geral, e o governo em particular, raciocinam como se o exterior não existisse. Isso é uma questão cultural, e que engloba a barreira da língua. No levantamento sobre o nível de inglês feito pela instituição GlobalEnglish com 200 mil funcionários de empresas nacionais e multinacionais, o Brasil ocupou a 70.ª posição num universo de 78 países analisados.

É preciso aprofundar o entendimento do impacto da cultura nas decisões da sociedade e do governo (inteligência) para, então, verificar que os brasileiros precisam educar sua emoção, adquirindo mais conhecimento para não ter medo da complexidade, enquanto os belgas precisam aprender a trabalhar de forma coletiva, criando relações sociais mais descontraídas, sendo ambos capazes de pensar e agir como um ser humano num contexto global, e não simplesmente como pertencentes a um grupo ou até mesmo um país. Na realidade, é preciso mais do que pessoas racionais (belgas) e emocionais (brasileiros): é necessária uma legião de pessoas espiritualizadas no sentido dado por Wigglesworth : “Espiritualidade é a necessidade humana inata que transcende qualquer fé ou tradição particular para ser conectado a algo maior que nós mesmos, maior que os nossos egos imaturos e as nossas necessidades insignificantes”. Pessoas espiritualizadas têm capacidade de amar e ser amadas, isto é, veem significado no amor, no trabalho e na coragem, e por isso desenvolvem capacidades e qualidades que as pessoas pouco espiritualizadas não têm: inspiração, intuição, propósito, sensibilidade, discernimento, altos níveis de conhecimento, visão grande de mundo.

Os extremos, como são os casos das culturas opostas do Brasil e Bélgica, nunca são boas soluções. Uma solução para o impasse de encontrar e desenvolver uma cultura média entre culturas opostas seria demonstrar que a orientação de médio prazo é melhor que a orientação de curto ou longo prazo para obter melhores resultados. Alta incerteza ao risco e individualismo, características da cultura belga, não são bons alicerces para uma sociedade saudável e feliz. Em contrapartida, a preferência por estilo de aprendizagem verbal e a cultura de dependência, com medo da complexidade, tanto nas famílias como nas organizações (liderança autoprotetiva, paternalismo, corporativismo), geram dificuldades em integrar os alicerces da inteligência (estratégia, previsão e ação) na solução dos problemas dos brasileiros. Em síntese, todas as culturas têm vantagens e desvantagens e, portanto, na busca de resultados mais efetivos e sustentáveis as pessoas e governos devem procurar um processo de aprendizado por comparação e colaboração com outras culturas mais antigas, fortes e maduras para desenvolver e integrar diferentes inteligências (cognitiva, emocional, cultural, espiritual).

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Na realidade, as diferenças culturais entre Bélgica e Brasil não são maiores que a atitude e hospitalidade dos brasileiros e o conhecimento e experiência dos belgas. A soma do conhecimento com a atitude e a habilidade chama-se competência. A inteligência nada mais é que a competência aplicada para resolver problemas cada vez mais complexos.

O pesquisador francês Albert Honlonkou descobriu que, em países onde o nível de educação é alto, corruptos tendem a se beneficiar menos da ignorância à procura de subornos. Seus estudos também mostram que a redução da corrupção está associada a um melhor desenvolvimento global, que se reflete em um maior IDH. Pessoas espertas, que têm medo dos livros (complexidade) e não têm interesse e coragem de enfrentar a corrupção, tomam medidas com base na sua forma egoísta, tentando obter vantagem em todas as situações, às vezes usando o famoso “jeitinho brasileiro”, e acabam ficando sem significado na vida. Já as pessoas inteligentes resolvem problemas considerando a situação de outras pessoas, procurando soluções do tipo ganha-ganha.

A cultura do casamento entre homem rico e mulher esperta, ou vice-versa, assim como do governo esperto com o povo ignorante, é uma estratégia de submissão e de manipulação dos países latinos que traz péssimos resultados, tanto para os relacionamentos (alto índice de divórcio) como para a economia (no que é internacionalmente conhecido como “voo de galinha”).

De fato, apagar o fogo do circo com futebol, carnaval e eventos religiosos, aproveitando-se da falta de maturidade e educação da cultura latina, é uma estratégia esperta e pouco inteligente, mas bem aceita pela população, que não tem história e cultura para enfrentar a complexidade da aprendizagem através de livros, outras línguas e culturas para diminuir a corrupção. Há também a questão da falta de acesso, visto que há menos livrarias no Brasil que apenas em Buenos Aires. Na Europa, o custo médio para voar de um país para outro é de 30 euros, por empresas de baixo custo, como Ryanair e Easyjet. Aqui, os preços para ir de um estado a outro são, em média, de 200 euros, exceto na época de eventos grandes – quando o preço fica infinitamente maior. Os preços das passagens do duopólio que opera no mercado internacional podem ficar muito mais baratos quando os bilhetes são comprados no exterior com cartão de crédito do país. O que determina o valor das passagens é a oferta disponível, o que pode variar de acordo com cada mercado. Por isso, as companhias brasileiras têm versões para cada país em que a empresa opera. Não adianta reclamar ao Ministério Público; é um sistema muito mais forte, que engloba famílias, empresas (nível micro) e governo (nível macro).

Os extremos, como são os casos das culturas opostas do Brasil e Bélgica, nunca são boas soluções

Não obstante, importante notar que as habilidades sociais dos brasileiros são fundamentais numa economia globalizada, mas é preciso também conhecimento relevante de países com mais de 1,5 mil anos de existência e já industrializados. As descobertas de petróleo e pré-sal estão se perdendo, não só por causa da falta de inteligência para lidar com o excesso de recursos naturais e com a corrupção, herança histórica de Portugal, mas por falta de aprendizagem com países que têm mais acesso ao conhecimento e experiência.

Se o governo e a sociedade entenderem a diferença entre esperto e inteligente, vão perceber que ser inteligente é melhor que ser esperto, mas cuidado: atitude sem conhecimento é contrainteligência. Governos e sociedades espertas tomam medidas com base na sua forma egoísta, tentando obter vantagem em todas as situações, sem pensar no interesse das pessoas em sua volta. Os governos e sociedades inteligentes resolvem problemas considerando o conhecimento coletivo à procura de soluções ganha-ganha.

O sábio é o que gosta de meditar o dia todo para fugir dos problemas, mas sempre tem frases prontas para situações que ele nunca enfrentou. O gênio é o que estuda muito, mas não tem atitude e coragem para tomar decisão. A passagem do esperto para o inteligente precisa de meditação e reflexão (o sábio) e de muita leitura (o gênio). Eis o grande desafio de passar diretamente de esperto para inteligente.

Em síntese, como o Brasil está cheio de emoção e a Bélgica, cheia de conhecimento, será melhor o Brasil perder e a Bélgica ganhar na emoção, no futebol. Isso é importante para mudar o paradigma cultural do país cheio de estádios, igrejas, bares, motéis e loterias, para o país do conhecimento, cheio de livrarias e boas instituições de ensino. Os belgas aprendem a se divertir, a compartilhar e ter mais tempo livre com a família; e os brasileiros usam mais o seu tempo livre para ler e aprender, vendendo no futuro mais o conhecimento do que suas próprias mãos (ou pés).

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Se isso ocorrer, já no curto prazo a derrota será vista como uma grande vitória de que o Brasil precisa: a troca de paradigma. A derrota contra Alemanha em 2014 não foi suficiente, visto que os jogadores brasileiros, representantes do povo, são extremamente imaturos e despreparados para lidar com a pressão de uma Copa do Mundo, visto não terem experimentado o conhecimento, a experiência, a temperatura e a cultura dos países cinzentos, mas sim o mimo da mídia, do governo e da sociedade.

Os protestos de refino cultural, organizados via redes sociais, deveriam acabar com a degradação moral e ética da cultura do esperto, desde aquele que aproveita para quebrar um banco de praça ou rouba R$ 10 reais até aquele que quebra uma prefeitura ou rouba R$ 10 bilhões. Infelizmente o 7 a 1 e todos os processos por que o Brasil passou (diversas crises econômicas, ditadura, impeachments, mortes suspeitas de ex-presidentes e candidatos a presidente, algumas prisões, como a de um dos mais espertos) não foram suficientes e, por isso, revoluções sociais e até mesmo guerras tendem a emergir quando as crises atingirem seu estopim.

Num futuro próximo, a maneira como as pessoas irão acessar e interpretar o conhecimento é que vai determinar a passagem da sociedade e governo 2.0, perdidos nesta avalanche de informações da web 2.0, a web das redes sociais, para sociedade e governo 3.0, que lidam com a complexidade inteligentemente. A era das redes quer evitar isso. Quanto mais avalanches de informações e caos, mais os governos e as gigantes americanas faturam. Mas essas gigantes e os governos espertos estão com os dias contados, porque a era dos espertos está acabando e vem aí a era das pessoas e governos inteligentes.

Cristiano Trindade de Angelis é analista do Ministério do Planejamento e doutor em Inteligência Governamental, autor do livro “Gestão por Inteligências”.
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