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No Brasil, o terceiro setor vive momentos de grande turbulência, somente comparados à atual crise do setor aéreo. Todavia, a crise do terceiro setor é de maior gravidade, pois a eventual ocorrência de um "apagão das ONGs" levará milhões de pessoas a uma situação de total abandono e desespero.

Desde a fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos, em 1543, a sobrevivência dessas pessoas tem dependido quase que exclusivamente da prestação de serviços sociais por organizações não-governamentais, as quais integram, em seu conjunto, o que hoje é denominado terceiro setor.

Não há dúvidas de que as "CPIs das ONGs" do Senado Federal e da Assembléia Legislativa Paranaense confirmarão as distorções que acometem considerável parcela das entidades do terceiro setor brasileiro.

Entretanto, quando analisados os escândalos de corrupção associados a determinadas ONGs, percebe-se que entre os envolvidos quase sempre figuram autoridades públicas e parlamentares (quem esqueceu da CPI dos Anões do Orçamento?), os quais participaram dos processos de transferência, fiscalização e controle de dinheiro público a estas entidades.

Assim, parece evidente que muitas vezes o papel do terceiro setor tenha sido desvirtuado pelo próprio Estado.

Indubitavelmente, o caso emblemático é o setor da saúde.

A Constituição de 1988 determina que a prestação dos serviços de saúde é um dever do Estado, mas que "as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde (SUS), segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos" (art. 199, § 1.º).

No mesmo sentido, estabelecem a Lei do SUS e a recente Portaria n. 3.277/06, do Ministério da Saúde, as quais asseguram que, nas hipóteses de utilização total da capacidade instalada dos serviços públicos de saúde, e comprovada e justificada a necessidade de complementar sua rede e, ainda, se houver impossibilidade de ampliação dos serviços públicos, o gestor poderá complementar a oferta com serviços privados de assistência à saúde, conferindo preferência às entidades filantrópicas e às sem fins lucrativos.

A Constituição não autoriza que o Poder Público "transfira" os serviços públicos de saúde para o terceiro setor, pois permite unicamente que tais serviços sejam por este setor complementados.

Deve-se partir desta premissa para a exata compreensão do que pode e do que não pode ser realizado por meio de parcerias entre o Estado e o terceiro setor, em áreas essenciais à dignidade e à sobrevivência dos cidadãos brasileiros.

Atualmente, de um lado temos a esfera pública estatal, representada pelo Estado; de outro, temos a esfera pública não-estatal, espaço no qual se insere o terceiro setor. Ambas as esferas devem conviver harmonicamente, a fim de possibilitar o acesso e a universalização da prestação de serviços sociais à população.

O espaço do terceiro setor deve ser ocupado unicamente por entidades que sejam o resultado da soma de três fatores: o exercício ativo da cidadania, a participação social emancipatória e a busca pela solidariedade por meio de ações de relevância pública, sempre a partir dos critérios e dos parâmetros fixados pela lei e pelo Direito. Presentes estes requisitos, eventuais parcerias firmadas entre o Estado e o terceiro setor nas áreas sociais – a exemplo dos serviços de saúde – são absolutamente válidas, não podendo ser anuladas nem pelos Tribunais de Contas, nem pelo Poder Judiciário.

Gustavo Justino de Oliveira, doutor em Direito do Estado pela USP, é presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-PR; vice-presidente do Instituto Brasileiro de Advogados do Terceiro Setor (Ibats); diretor da Revista de Direito do Terceiro Setor, da Editora Fórum e professor do mestrado em Direito da Unibrasil. gustavo@advcom.com.br

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