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Sergio Moro após conferência de imprensa em que anuncia sua demissão do governo.
Sergio Moro após conferência de imprensa em que anuncia sua demissão do governo.| Foto: EVARISTO SA / AFP

Incredulidade. Talvez não haja melhor expressão para o pronunciamento do agora ex-Ministro da Justiça, Sergio Fernando Moro.

Quando não bastasse as fundas repercussões políticas da tragédia do coronavírus, as placas tectônicas de Brasília entram, definitivamente, em temperatura de ebulição. Frisa-se que não estamos diante de uma pura e simples sucessão ministerial. Se o fosse, nada mais normal e inerente ao jogo do poder, pois ninguém é insubstituível na ordem dos acontecimentos políticos. Todavia, se tal regra vale para ministros de Estado, também aplica-se para presidentes da República. Afinal, na democracia, o poder é sempre transitório e não se presta a autoritarismos de empreitada.

Objetivamente, o pedido de demissão do ministro Moro não foi uma peça singela. Com semblante firme e determinado – como lhe é habitual –, a manifestação foi objetiva, contundente e cortante. Em época de tantos e tamanhos relativismos, homens de princípios e de fibras morais inquebrantáveis naturalmente se sobressaem. Como um raio devastador, as declarações de Sergio Moro causam danos imensuráveis ao Palácio do Planalto. E o mais grave: por mais que o Presidente fale, as palavras do demissionário, por sua história e trajetória no combate à corrupção, estarão no altar da credibilidade pública.

Mas, então, o que acontecerá no amanhã do Brasil?

Ora, diante da impossibilidade da previsão do futuro, o que resta é a análise séria e detida dos fatos à luz da legalidade vigente. Além de indicar indevida pressão política para a substituição da chefia institucional da Polícia Federal, o ex-ministro da Justiça foi categórico em questionar a veracidade de determinadas informações oriundas do Planalto. Indo adiante, foi sugerido que a exoneração, “a pedido”, do delegado Maurício Valeixo teria suposto vício formativo, em ato solene, publicado no Diário Oficial. Por fim, foi ainda revelado que o ministro da Justiça fora surpreendido por uma exoneração às escuras, sem a aconselhável diplomacia de prévia comunicação presidencial.

Se sim ou não, caberá a investigação dos fatos demonstrar sua exatidão ou equívocos. Todavia, em perfunctória análise abstrata, é possível antever potencial prática de crime de responsabilidade por atentado à ética constitucional (art. 85, CF). Sem cortinas, a República não é uma terra de ninguém nem autoriza poderes absolutos a quem quer seja, eleito ou não-eleito. Em outras palavras, a vitória nas urnas não é uma carta de alforria ao arbítrio incontrolável nem à arrogância prepotente desmedida.

O constitucionalismo contemporâneo, em sua normatividade  superior, assegura a racional contenção dos ímpetos do poder, outorgando aos cidadãos, sem discriminação, direitos fundamentais invioláveis e de fiel observância cogente. Em sua dimensão política, a Constituição é absolutamente intolerante com abusos de qualquer natureza, fazendo da democracia um instrumento de elevação da razão pensante em favor de decisões públicas motivadas, justas e decentes. Os mais antigos costumavam chamar o chefe do Poder Executivo de “o primeiro magistrado da nação”, indicando que os gestos e atitudes presidenciais deveriam estar envoltas nos mais nobres e puros princípios da ordem constitucional. Sim, o presidente não é deus, mas jamais pode se perder em pecados mundanos.

Em sua insuperável monografia sobre o Impeachment, a sabedoria superior de Paulo Brossard faz realçar que, “embora possa haver eleição sem que haja democracia, parece certo que não há democracia sem eleição. Mas a só eleição, ainda que isenta, periódica e lisamente apurada, não esgota a realidade democrática, pois, além de mediata ou imediatamente resultantes de sufrágio popular, as autoridades designadas para exercitar o governo devem responder pelo uso que dele fizerem, uma vez que ‘governo irresponsável’, embora originário de eleição popular, pode ser tudo, menos governo democrático”.

Como se vê, democracia exige responsabilidade categórica no exercício do poder. E só há responsabilidade com respeito à lei, às instituições, aos cidadãos e à sociedade. Ninguém é eleito para governar a si ou aos seus, mas ao país com um todo orgânico e integrado. Até mesmo porque o próprio princípio da impessoalidade (art. 37, CF) determina que as decisões fundamentais da República não podem se guiar por critérios sanguíneos, impondo um olhar presidencial prudente, equidistante e ponderado diante das complexas e ágeis equações do poder.

Sabidamente, as circunstâncias da política são móveis. Em questão de instantes, as nuvens podem se dissipar e o sol voltar a lançar raios de luz. Para tanto, há que se privilegiar o talento político, a capacidade de compor diferenças e a habilidade de transformar adversários em aliados na realização dos altos interesses nacionais. Todavia, resta claro que o Planalto não é rodeado apenas por anjos. Mas culpar sempre os outros e não olhar a si mesmo, antes de força, demonstra profunda fragilidade, incapacidade de autocrítica e falta de humildade perante os difíceis desafios da vida.

Em sentença lapidar, Rui aconselhou: “Não cortejeis a popularidade. Não transijais com as conveniências”. Sergio Moro, mais uma vez, cumpriu com seu dever. E os demais? Na resposta, talvez a paz da continuidade governamental ou a sinuosa rota do impeachment presidencial.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.

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