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A disseminação rápida e global do Sars-Cov-2 e suas repercussões sociais e econômicas tem aumentado a pressão pela busca de uma solução definitiva para a pandemia, desafiando a comunidade científica.
Como não tínhamos tido contato com esse vírus e considerando a mortalidade das formas graves da doença, atingir a imunidade comunitária através de sucessivas ondas de infecção teria um custo humanitário, econômico e social inaceitável. Ao que tudo indica a solução definitiva virá somente com uma vacina eficaz e segura, aplicada em escala global.
Esse tipo de desafio não é novo, surtos de doenças infecciosas nos acompanham desde os primórdios da nossa espécie e não deixarão de acontecer. Em surtos anteriores, seja da influenza H1N1 (2009), do Ebola (2014) na África Ocidental, da síndrome respiratória aguda grave (Sars) em 2002, da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers) em 2012 ou de Zika (2015) nas Américas, esse tipo de pressão pela criação de uma vacina já aconteceu, porém com resultados distintos.
No caso da H1N1 a vacina foi apresentada de maneira considerada ágil, mesmo que após o pico da pandemia. Já a vacina para a Sars, para o ebola e para a zika não chegaram a estágios de aplicabilidade clínica, pois os surtos passaram, com eles os interesses políticos e consequentemente o financiamento das agências de fomento privadas e governamentais.
Conhecendo essa realidade e dada a importância do desenvolvimento de vacinas para doenças com potencial pandêmico, agências governamentais, empresas de vacina e de biotecnologia já vêm em uma verdadeira corrida há alguns anos. Antes da pandemia atual, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já mantinha uma lista de prioridades de desenvolvimento de vacina contra patógenos conhecidos, inclusive considerando uma hipotética doença “X”, que seria uma ameaça à saúde global. O Sars-Cov-2 se mostrou um perfeito ator para o papel da doença “X”.
Esses grupos atuam no desenvolvimento de uma plataforma “universal” para desenvolvimento de vacinas de caráter experimental, que passariam pelas fases iniciais de investigação clínica e estariam prontas para serem lançadas em estudos clínicos de eficácia e segurança na vigência da próxima pandemia. A ideia teórica da plataforma é sua utilização para a apresentação de genes de uma ampla gama de patógenos, permitindo a codificação de seu material genético, a qual a resposta imune do organismo seria direcionada.
Esse tipo de plataforma, um verdadeiro banco, recebe muito da experiência dos estudos de desenvolvimento de vacinas personalizadas para o tratamento do câncer, o que permitiria teoricamente o desenvolvimento de uma vacina em um período de menos de 16 semanas após o sequenciamento genético de um novo vírus epidêmico, o que seria um alento para uma futura epidemia. Mas quais os desafios atuais para desenvolvimento da vacina?
A obtenção de uma vacina eficaz envolve estudos para conhecimento da melhor maneira de abordar as proteínas que constituem o material genético do vírus, objetivando a obtenção do melhor efeito imunogênico. Ao induzirmos nosso sistema imunológico, podemos por exemplo, exacerbar a piora da função pulmonar, sendo que isso já foi observado tanto na Sars quanto na Mers. Essa consequência reafirma a importância de testes pré-clínicos em animais, cujo melhor modelo – o animal utilizado no estudo - ainda não está definido (macacos rhesus, furões ou hamsters).
Passada a fase de pesquisa e desenvolvimento, a etapa de testes clínicos é desafiadora. A identificação dos locais dos novos surtos, necessário para o recrutamento de pacientes, muitas vezes não é fácil, pois acontecem em países diferentes, com muitos entraves éticos e das autoridades regulatórias locais. Em doenças de alta mortalidade, o recrutamento populacional para os estudos pode se tornar difícil, pois a aderência aos estudos que possuem grupo controle - aquele grupo que receberá o placebo - pode não ser aceito pela população, dificultando a interpretação dos resultados.
A etapa dos testes clínicos procura determinar a potencial duração da imunidade da vacina, se uma ou mais doses serão necessárias e seu perfil de segurança, ponto crucial para a aderência da população ao programa.
Percebam quanto o desenvolvimento de vacinas é lento, caro e tem altas taxas de falha. Após os testes clínicos, a construção da capacidade de manufatura de vacinas em larga escala custa centenas de milhões de dólares. Países ricos podem pagar por isso tendo sua própria população em mente, mas não existe uma entidade global responsável pelo financiamento ou ordenamento de produção e manufatura da vacina.
Vencidas as etapas de uma resposta rápida ao vírus, do desenvolvimento de uma vacina, dos testes clínicos de eficácia e segurança e da produção em larga escala, ainda temos o desafio das campanhas de vacinação. O objetivo delas é atingir a imunidade comunitária, “de rebanho”. No caso da Covid-19 calcula-se que será atingida quando 60-82% da população for imunizada, valor esse muito influenciado por fatores biológicos, ambientais, sociais e comportamentais. Para termos ideia do tamanho do desafio, estudos populacionais recentes de países que já passaram pela pior fase da pandemia, possuem prevalência de imunidade na população de 2-5%.
Muito antes da atual pandemia, a OMS já havia colocado o problema da recusa à vacinação como uma das dez ameaças à saúde global. Surtos de sarampo, coqueluche, influenza já foram detectados recentemente em virtude da crescente quantidade de pessoas deliberadamente não se vacinando ou não vacinando seus filhos. Essa desconfiança nas vacinas tem sido impulsionada por informações falsas vinculadas na internet, pelo crescimento de comunidades de “céticos”, preocupações em relação à segurança e até alegações de liberdade de escolha individual.
Normalmente já consideramos que uma parcela da população poderá ter restrições ao uso da vacina, seja pela idade, comorbidades ou estado de imunidade comprometida. Caso a parcela da população que simplesmente se recusar a aplicação da vacina for significativo, em torno de 10-15%, o objetivo de se atingir a imunidade comunitária pode ser colocado em risco.
Nosso país possui experiência na realização de campanhas de vacinação em massa, o Sistema Único de Saúde possui capilaridade, porém o fenômeno das redes sociais é uma novidade. Campanhas públicas de educação e orientação serão necessárias, para esclarecimento da população para a importância da contribuição de cada indivíduo para atingir a imunidade comunitária. Normalmente quanto mais próximo do pico da pandemia maior é a aderência ao programa. Transparência em relação à efetividade e eventuais efeitos colaterais deve ser um compromisso do poder público, para aumentar a confiança pública na vacinação.
Acompanhamento dos principais estudos de desenvolvimento da vacina, aderência aos protocolos internacionais, participação nos estudos multicêntricos, acordos internacionais de transferência de tecnologia, recursos financeiros para capacitação de laboratórios, centros de pesquisa e produção de vacinas em larga escala devem entrar no radar de nossas autoridades, para quando a vacina se tornar disponível, podermos ter ela à disposição para aplicação em nossa população.
A solução definitiva da Covid-19 será atingida com a dedicação da comunidade científica, que proverá o desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz. Com a objetividade da comunidade política que deve fomentar as relações internacionais e o remanejamento dos parcos recursos da União. Com a colaboração da população brasileira, que deve manter as boas práticas de não disseminar o vírus e assim que disponível aderir ao programa de vacinação em massa. É um enorme desafio.
Fábio Silveira é médico, cirurgião de transplantes do Instituto para Cuidado do Fígado e Hospital do Rocio.