Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

A tornozeleira em Bolsonaro e o teatro da política

Jair Bolsonaro
Bolsonaro será monitorado por uma tornozeleira eletrônica, não poderá usar redes socias e nem se aproximar de embaixadas. (Foto: André Borges/EFE)

Ouça este conteúdo

Na conjuntura brasileira contemporânea, marcada pela imbricação entre as esferas política e judiciária, a tornozeleira eletrônica converteu-se em símbolo de um debate que transcende sua função técnica. Mais que instrumento de controle, converteu-se em ponto de inflexão nas discussões sobre os limites da legalidade, a liberdade de expressão e a instrumentalização do Direito.

A tornozeleira eletrônica imposta ao ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal, em processos ainda em tramitação, evidencia um cenário no qual a aplicação da lei convive com a dramatização política. A restrição à sua comunicação pública, justificada por suspeitas de envolvimento em atos antidemocráticos, reacende reflexões sobre a autonomia dos poderes e a alegada neutralidade das instituições.

Jair Bolsonaro reafirma seu direito à ampla defesa e nega qualquer prática ilícita. Com isso, mobiliza sua base de apoio, que interpreta o episódio como evidência de perseguição contra lideranças conservadoras. O embate transborda os contornos jurídicos e assume feições teatrais, acirrando a polarização e eclipsando o juízo ponderado.

A oposição, por sua vez, também movimenta peças nesse tabuleiro. Ainda que apresente denúncias fundamentadas, recorre frequentemente a simplificações e recursos retóricos pouco eficazes para o esclarecimento público. O confronto racional de ideias cede espaço à acusação repetitiva; o discurso informativo é substituído pela construção narrativa. O juízo equilibrado transforma-se em exceção.

O caso da tornozeleira eletrônica transcende a figura do ex-presidente. Reativa uma antiga tensão entre Justiça e política. Medidas formalmente legais produzem efeitos que ultrapassam o campo técnico, convertendo-se em fatos políticos e emblemas da disputa pública

Esse panorama evoca os universos satíricos de Bruzundangas e Coisas do Reino de Jambon, obras nas quais Lima Barreto compôs uma crítica mordaz ao funcionamento da política nacional por meio da ficção. Nesses reinos imaginários, as instituições são convertidas em palcos de vaidades e interesses oligárquicos, ocultos sob o verniz republicano. O autor denuncia a distância entre a forma legal das normas e sua aplicação concreta, frequentemente subordinada a conveniências e arranjos de poder. Sua crítica permanece atual, ao revelar uma república onde o rito democrático convive com manobras de bastidor e o exercício do poder se converte em espetáculo diante de um público estupefato.

O caso da tornozeleira eletrônica transcende a figura do ex-presidente. Reativa uma antiga tensão entre Justiça e política. Medidas formalmente legais produzem efeitos que ultrapassam o campo técnico, convertendo-se em fatos políticos e emblemas da disputa pública. A instabilidade institucional reside não apenas no conteúdo das decisões, mas também na forma como elas são percebidas e assimiladas socialmente.

VEJA TAMBÉM:

A liberdade de expressão, também em questão, revela-se ambígua. Lula, durante seu período de prisão, teve sua comunicação restringida e recorreu a canais indiretos para dialogar com o eleitorado. Atualmente, Jair Bolsonaro enfrenta situação análoga, ainda que sob outra moldura. Esses episódios evidenciam os desafios de preservar direitos individuais diante de pressões de natureza judicial e política.

A democracia requer instituições sólidas, mas exige clareza e responsabilidade. O Poder Judiciário, mesmo amparado constitucionalmente, deve considerar os efeitos de suas decisões sobre o equilíbrio entre os poderes. O campo político, por sua vez, precisa renunciar à vitimização crônica e ao uso sistemático do ressentimento como combustível de mobilização.

A república brasileira já testemunhou muitas voltas – algumas trágicas, outras farsescas. Em todas elas, a manipulação do Direito como arma de disputa revelou-se corrosiva. O problema não está na existência de conflitos, mas na recusa sistemática ao debate qualificado. Persistem os traços denunciados por Lima Barreto: retórica inflamada, articulações obscuras e um público estupefato. A saída reclama uma crítica lúcida e desapaixonada, capaz de perscrutar os limites e abusos, venham de onde vierem. O funcionamento institucional não pode ser capturado por paixões momentâneas nem por cruzadas de ocasião. Cabe à sociedade abandonar a condição de espectadora passiva e assumir, enfim, o papel de agente vigilante da vida pública.

Carlos Henrique Gileno, doutor em Ciências Sociais, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Unesp, campus de Araraquara, editor-chefe da Revista Sem Aspas e membro da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC). É autor dos livros “Lima Barreto e a condição do negro e do mulato na Primeira República” (2010) e “Perdigão Malheiro e a crise do sistema escravocrata e do Império” (2013).

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.