O tema da violência patrimonial ganhou especial relevância no direito de família após a edição da Lei nº11.340/06, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Esse tipo de violência é mencionado nos artigos 5º, 7º, IV, 9º §4º, 18, §4º e 6º e artigo 24.
Naquilo que importa ao presente artigo, vejamos a seguir o conceito dado pela lei para a violência patrimonial, conforme artigo 7º, IV:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
[...]
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
Segundo a lei, a violência patrimonial consiste em qualquer conduta capaz de gerar prejuízo patrimonial à vítima, seja a retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetivos, bens, valores, direitos ou recursos econômicos. Muito embora a referida lei seja de natureza especial, portanto destinada a regular as relações domésticas e proteger a mulher das mais variadas agressões, é inevitável reconhecer que repetidas vezes o agente ativo dessa conduta é o Estado e a vítima todos os pagadores de impostos.
Aqueles que não estão habituados aos estudos tributários talvez pensem que há um exagero na afirmação, porém, a realidade nos mostra fatos que não podem ser ignorados. Nas linhas a seguir espero convencer o leitor do acerto da tese aqui apresentada.
Segundo o princípio jurídico da legalidade tributária, todo tributo deve ser criado por lei. Veja-se o que diz a Constituição Federal no artigo 150, I abaixo transcrito:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
O princípio da legalidade tributária serve para limitar o Poder do Estado sobre o patrimônio dos indivíduos, permitindo que o cidadão possa escolher seus representantes mediante o voto, e, uma vez eleitos, estes representantes serão responsáveis pela edição das leis, inclusive as leis tributárias. Nesse sentido, pode-se dizer que os impostos decorrem da vontade dos cidadãos, e, portanto, que houve consentimento na sua exigência.
Imaginem um homem que, com o consentimento da esposa, subtrai bens essenciais do lar para pagar dívidas pessoais. A princípio não há que se falar em violência patrimonial pois sua esposa consentiu com o uso de bens da família para quitação de dívidas. Ou seja, o consentimento entre o casal manifesta o interesse em prol de um objetivo comum e afasta a ilegalidade da conduta do homem.
Esse não seria o caso se o homem, após conflitos no lar e sem o consentimento da esposa, subtraísse bens essenciais da família para quitar dívidas pessoais. Aí então estariam presentes os elementos caracterizadores da violência patrimonial, pois este homem não poderia agir de tal modo sem consentimento da esposa.
O ponto central para afastar ou caracterizar a violência patrimonial é, então, o consentimento da vítima
Contudo, no exemplo acima é muito difícil de provar se ele estava presente ou não. Em sua defesa, o homem irá alegar que a esposa consentiu e a esposa, sentindo-se lesada com a violência, vai dizer que nunca autorizou a subtração dos bens. Dependendo das provas apresentadas e da conduta pregressa dos envolvidos, o juiz dará à causa um veredicto.
No aspecto tributário, a questão não é muito distante daquilo que foi exemplificado linhas acima, bastando substituir o consentimento pela lei, o homem pelo Estado e a esposa pelo cidadão. Provado que o tributo foi criado e exigido por lei, não há que se falar em violência patrimonial tributária.
Ausente a lei, ou, o consentimento, se o Estado tomar bens particulares de seus jurisdicionados estará caracterizada a violência patrimonial contra o cidadão.
Há que se notar que essa afirmação não encontra respaldo em lei, pois ainda não existe no ordenamento previsão sobre a violência patrimonial tributária do Estado contra o cidadão. Mas a mera ausência de lei não significa que um fato não ocorreu, nem que ele não existe. Ora, ninguém duvida de que antes da Lei Maria da Penha existir foram praticados inúmeros casos de violência patrimonial contra as mulheres. Tanto foram os casos que a lei nasceu, justamente para proteger as vítimas.
Estabelecidos os pressupostos, vejamos na prática alguns exemplos de violência patrimonial tributária.
Repetidas vezes o Estado, por meio de seus agentes federais, estaduais ou municipais, exige tributos dos cidadãos sem lei prévia que determine a hipótese de incidência, alíquota e base de cálculo
Como visto acima, sem a lei inexiste o consentimento, de modo que está caracterizada a violência patrimonial do Estado em subtrair bens do cidadão.
Durante muitos anos (e até hoje) o Estado cobra imposto de renda sobre verbas indenizatórias, sob a alegação de que tais verbas seriam tributáveis ou de que não existe lei de “isenção”. Ora, a não-incidência não exige lei de isenção, ela representa a existência de um fato não tipificado como gerador de tributo, nesse caso, o recebimento de uma verba indenizatória que não se enquadra no conceito de direito privado de renda/rendimento. Há, novamente, violência patrimonial do Estado.
Além da violação ao princípio mais elementar aqui discutido, existem outras violências que se originam da apuração incorreta da alíquota e base de cálculo, as quais também atingem o patrimônio dos cidadãos de forma indevida. Há também, os casos em que os municípios cobram ITBI na operação de realização de capital social mediante incorporação de bens imóveis, ignorando a imunidade constitucional prevista no artigo 156, II, §2º, I da CF/88.
Se a violência patrimonial contra a mulher tardou para ser tipificada em lei, é igualmente esperado que a violência patrimonial tributária do Estado ainda avance muito sem qualquer freio, até que um dia tenhamos instrumentos adequados para proteção dos direitos individuais dos cidadãos pagadores de impostos. Entretanto, este debate precisa primeiro ser trazido à luz para que a realidade não seja ignorada.
Milhares de cidadãos brasileiros sofrem violência patrimonial tributária sem que sequer tenham consciência desse fato. A consciência da realidade que nos cerca é o pressuposto mais elementar, pois, sem ela, não é possível exigir que os cidadãos cobrem dos seus representantes a edição de leis que lhes protejam dos avanços violentos do Estado sobre o patrimônio.
Cícero Antônio Favaretto é advogado especialista em direito tributário.
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