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Depois de séculos de hegemonia racionalista e patriarcal, com pouco espaço para os afetos no direito de família, o Brasil ocupa a linha de frente de uma verdadeira revolução jurídica para a construção de um mundo mais tolerante sob a pedra de toque do amor... Será?

Afetos são, sem dúvida, importantes. Estão vinculados à manutenção do indivíduo, como a fome e o medo; ou da espécie, no caso da atração sexual, por exemplo. Contudo, como não há escolha no “sentir”, eles não são expressão da liberdade. Por isso, em si mesmos, não são bons ou maus. Podem inspirar comportamentos altruístas ou egoístas. Algumas vezes, é um dever abraçá-los. Noutras, precisamos dissentir deles. Basta pensar na atração sexual de um adulto por uma criança ou de um filho por sua mãe. Dar vazão a tais movimentos levaria a situações contrárias ao bem individual e comum.

No Brasil, graças à confusão terminológica e conceitual, há projetos de lei que elevam o afeto a princípio e fonte de direito, como se a conduta decorrente dele fosse sempre boa, justa e de relevante interesse social. É o caso do Estatuto das Famílias (PL 470/2013 – não confundir com o Estatuto da Família, PL 6.583/2013). O artigo 5.º do projeto de lei estabelece o princípio da afetividade como “fundamental”, ao lado de indiscutíveis valores como a dignidade humana, a solidariedade ou a responsabilidade. Mas qual é o papel singular do princípio da afetividade nesse contexto? Favoreceria a família ou introduziria um elemento desarticulador?

Há projetos de lei que elevam o afeto a princípio e fonte de direito, como se a conduta decorrente dele fosse sempre boa e justa

Encontraremos uma resposta nos preceitos do projeto de lei que são inspirados pelo princípio da afetividade. O estatuto propõe, por exemplo, que cônjuge e amante tenham igual status, com direitos equivalentes e simultâneos. Há quem argumente que tal dispositivo jurídico seria, na realidade, uma justa punição à infidelidade de um dos cônjuges. Contudo, os efeitos patrimoniais de tal punição recairiam também sobre as vítimas da traição: o outro cônjuge e os filhos. Além do mais, serviriam como um estímulo econômico para amantes oportunistas.

O Estatuto das Famílias também cria, em seu artigo 104, o direito de convivência para “qualquer pessoa” que tenha “vinculo de afetividade” com criança ou adolescente. A partir daí, o vizinho simpático que estabelece um vínculo afetivo mútuo com a filha de 7 anos da vizinha poderia reivindicar em juízo o direito de visitá-la, mesmo se os pais se opuserem.

Nos exemplos acima, fica claro o avanço de uma cultura individualista sobre a família que ficaria mais vulnerável à instabilidade dos afetos. Atrações românticas e afetivas podem até preceder a formação de laços, mas não se confundem com a objetividade do núcleo jurídico familiar.

Qual é o custo para a sociedade quando, na família, o afeto egoísta substitui o dever, o individualismo prevalece sobre a solidariedade? Outras relações sociais baseadas na fidelidade – palavra que desaparece no Estatuto das Famílias – também serão enfraquecidas. Vale a pena ingressar neste admirável mundo novo?

Antonio Jorge Pereira Júnior, doutor em Direito pela USP, é professor na Universidade de Fortaleza, atuando no Programa de Pós-Graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), vencedor do Prêmio Jabuti (categoria Direito, em 2012, com o livro “Direitos da Criança e do Adolescente em face da TV”) e membro da International Academy for the Study of the Jurisprudence of the Family (IASJF) e da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de las Personas (AIDFP).
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