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Tirania com cores de Justiça: a exceção travestida de normalidade institucional

Alexandre de moraes
Com a solicitação, julgamento de Bolsonaro e outros sete réus terá sessões de terça a sexta da próxima semana. (Foto: Gustavo Moreno/STF)

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O cenário institucional brasileiro dos últimos anos, marcado pelo protagonismo judicial e, em especial, pela atuação do ministro Alexandre de Moraes, permite uma daquelas leituras raras em que o direito e a filosofia política se reencontram num cruzamento incômodo: o da obediência cega a uma autoridade despida da mais mínima racionalidade jurídica.

Desde 2019, o ministro Alexandre de Moraes passou a ocupar um lugar central no Supremo Tribunal Federal e, posteriormente, no Tribunal Superior Eleitoral. Sua atuação à frente do Inquérito das Fake News – instaurado de ofício, sem provocação do Ministério Público, com base no Regimento Interno do STF – marcou um ponto de inflexão no modelo jurídico brasileiro. Concentrou-se em sua figura a função de relator, investigador, julgador – e, em certo sentido, também de vítima –, numa inversão completa da lógica do sistema acusatório.

O Brasil contemporâneo encenou, com desconcertante nitidez, a teoria de Austin: o direito como comando de um soberano, obedecido sob pena de coerção, e não como um sistema de regras aceitas pela razão institucional

No TSE, a atuação de Moraes durante as eleições de 2022 foi igualmente marcada por decisões urgentes, censuras prévias, ordens de remoção de conteúdo e uma atuação firme contra o que se classificou como "desinformação" – termo que, na prática, foi usado para silenciar opiniões de comentaristas políticos. Os eventos de 8 de janeiro de 2023 conferiram à atuação de Moraes um caráter quase plenipotenciário: prisões em massa, bloqueios de bens, processos sob sigilo, medidas excepcionais. A legalidade foi esquecida, a Constituição solapada, e o medo, instaurado.

O mais intrigante, porém, foi o comportamento das instituições diante de tais medidas de Moraes. Tudo foi cumprido. Sem resistência. Sem debate público efetivo. Sem dissenso institucional relevante. Tribunais, bancos, plataformas, autoridades administrativas e órgãos policiais – todos obedeceram. Ainda que muitas dessas ordens apresentassem vícios jurídicos visíveis, e mesmo diante do reconhecimento doutrinário de diversos excessos, o que prevaleceu foi a eficácia pura das ordens e decisões ilegais do ministro.

John Austin, jurista do século XIX, propôs uma concepção de direito fundada no comando de um soberano, obedecido habitual e passivamente por seus súditos, sob ameaça de sanção. Em sua teoria, não importa se o comando é justo, racional ou sequer legal em sentido técnico: é direito porque é obedecido. Não há espaço para debate institucional, tampouco para aceitação reflexiva das ordens emanadas. Há apenas autoridade, ordem e submissão.

H. L. A. Hart, um século depois, criticou e superou essa visão. Em sua obra O Conceito do Direito, Hart delineia um sistema jurídico mais sofisticado, no qual o direito não se reduz a um conjunto de ordens coercitivas, mas consiste em um sistema de regras cuja legitimidade depende da aceitação institucional por parte dos oficiais e da sociedade. Para que algo seja reconhecido como direito, não basta que seja imposto: é necessário que esteja inserido em uma estrutura normativa aceita, fruto de um compromisso consciente com o ordenamento jurídico vigente.

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Embora a teoria de Hart seja amplamente reconhecida como um avanço em relação ao modelo austiniano, o funcionamento das instituições no Brasil contemporâneo parece, paradoxalmente, alinhar-se muito mais à concepção de Austin do que à de Hart. Ordens desprovidas de base legal e marcadas por vícios evidentes, como algumas das proferidas por Moraes e o STF, foram executadas de forma automática, quase mecânica, sem reflexão institucional ou questionamento jurídico minimamente consistente. O que se observa, em verdade, é um cenário que encarna a descrição austiniana da obediência cega ao comando de um ministro soberano – e não o ideal hartiano de um sistema jurídico legitimado pela aceitação consciente de regras.

O Brasil contemporâneo encenou, com desconcertante nitidez, a teoria de Austin: o direito como comando de um soberano, obedecido sob pena de coerção, e não como um sistema de regras aceitas pela razão institucional. A perspectiva interna de Hart – que exige um compromisso genuíno com a legalidade e com a estrutura normativa – cedeu lugar à lógica da obediência automática e cega.

Para os familiarizados com a obra de Stanley Milgram, os fatos ocorridos no Brasil talvez não sejam surpreendentes. Em seu clássico Obediência à Autoridade, Milgram demonstra como a grande maioria dos seres humanos, inseridos em uma ordem hierárquica, tende a obedecer ordens – mesmo quando flagrantemente imorais ou ilegais. O que aconteceu no Brasil foi um caso emblemático em que, mesmo em um país regido por uma Constituição que tem como alicerce os direitos fundamentais, a obediência cega prevaleceu.

Atribuem a Montesquieu a frase segundo a qual “não haveria tirania mais cruel do que aquela que se exerce à sombra das leis e com as cores da justiça”. Não há, nas obras do filósofo francês, nenhum trecho que corrobore expressamente tal ideia. Saber, afinal, quem cunhou a frase não importa. O fato é que ela resume o sentimento de quem presenciou o que ocorreu no Brasil nos últimos anos: a corrosão silenciosa dos alicerces jurídicos e a implementação de um estado de exceção travestido de normalidade institucional.

Entre os filósofos, a disputa sobre a verdadeira natureza do direito seguirá aberta. Mas, diante do que se viu no Brasil nos últimos anos, é inevitável reconhecer que as lições de Austin seguem fazendo sentido.

Mathias de Azevedo Bueno, advogado, especialista em arbitragem internacional, pós-graduado em Direito Empresarial, é sócio do Bueno Cavaggioni Advogados.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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