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Nessas últimas semanas estamos assistindo a um intenso debate sobre teorias éticas e antropológicas contrastantes em relação ao valor da vida humana. Mais precisamente, sobre o valor de uma vida humana compreendida como "sem cérebro". Os interrogativos sobre a anencefalia são diversos: por que não respeitar a autonomia dos genitores em interromper a gestação? Por que uma criança destinada a morrer em poucas horas ou poucos dias não poderia salvar a vida de outra criança que poderia, desta forma, apresentar um desenvolvimento feliz? Uma criatura anencefálica está já morta desde o início? Não pode ser considerada pessoa, visto que não apresenta vida de relação?

Inicialmente, é necessário precisar cientificamente o que é a anencefalia. E ela não é ausência de cérebro. Trata-se da mais grave malformação do sistema nervoso central. É um defeito que começa geralmente em torno do 23.° dia de vida embrionária. Existe uma ausência parcial ou total dos ossos da calota craniana, da pele e de grande parte do tecido nervoso. A anomalia do tecido nervoso pode ser de diferentes graus. Devido a esta grande variabilidade, algumas crianças anencefálicas vivem mais do que outras. O tronco encefálico permanece ativo, na maioria dos casos. É ele quem controla a circulação e a respiração. Assim, estas crianças não preenchem os critérios científicos e legais vigentes de morte encefálica. Muitos destes fetos anencefálicos morrem antes ou durante o parto. Os demais podem viver, em sua maioria, autonomamente durante alguns dias.

Se de um lado sabemos que se trata de uma condição extremamente grave e incompatível com uma vida humana longa e com capacidade de relação, de outro existe uma necessidade crescente de órgãos na população pediátrica. Foram realizadas diversas tentativas, sobretudo nos Estados Unidos na década de 80, de se utilizar órgãos provenientes dos anencéfalos. Este grupo de especialistas, da American Task Force on Anencephaly, descreveu esta experiência e chegou à conclusão de que o anencéfalo como doador de órgãos apresenta grandes limitações. Isto se deve, sobretudo, ao grande número de malformações associadas que ocorrem em outros órgãos.

O problema mais grave, contudo, é o ético. Como o anencéfalo não possui todos os critérios de morte encefálica ele não está morto. Desta forma, as posições em relação a ele podem ser apresentadas de duas maneiras distintas:

Ele não é pessoa. Jamais terá consciência, devido à ausência dos hemisférios cerebrais. A impossibilidade de relações sociais define um posicionamento antropológico aqui de identidade completa entre o cérebro e a vida de relação. Esta corrente filosófica que atribui diferentes graus de dignidade aos seres humanos. E o anencéfalo estaria entre os últimos, sem nenhum tipo de direito, pois que não é pessoa. Nesta mesma linha, estariam também os pacientes em coma irreversível e os embriões.

Outros, com uma antropologia unitária e racionalmente fundamentada, defendem que se trata de uma vida humana em toda a sua dignidade, mesmo que gravemente enfermo e destinado à morte na fase neonatal. Um paciente terminal neonatal e que merece cuidados e conforto para que tenha uma morte tranqüila. Para esta linha não é possível pensar na vida humana dualisticamente. Ou seja, separar ser humano de pessoa.

Se o anencéfalo não é um sujeito humano, porque o seu sistema nervoso é pouco desenvolvido, então o que ele é na realidade: um vegetal ou um organismo não-qualificável dentro da espécie humana? Esta criatura realmente não se relaciona com sua família ou com Deus? Quem ou o que ela é ou deve ser dentro da nossa sociedade secular?

A grande pergunta que devemos responder não é se devemos ou não autorizar o aborto nestes casos. Ela é muito mais complexa. Nós, como seres humanos, pertencemos à natureza e a transformamos de acordo com nossos desejos e necessidades. Mas a natureza humana é algo diverso e que nos dias de hoje vem sendo cada vez relegada a um plano secundário. Vivemos em um relativismo quase absoluto, em que procuramos legitimar a morte de um ser humano inocente. Um mundo pós-humano, como vem sendo colocado por alguns filósofos. Estamos perdendo a nossa humanidade em nome da utilidade que possuímos ou cremos possuir dentro de nossa sociedade.

Sei que sou voto vencido. Mas não concordo que a legalização do aborto neste caso possa acabar com a dor de quem se defronta com este mal na família. Nem mesmo reduz as nossas dúvidas nesta condição paradoxal. Um mundo que valoriza apenas o cérebro, ou o fato de ser perfeito, não é realmente digno das poucas horas de vida de uma criança com anencefalia.

Cícero de Andrade Urban é professor de Medicina da Universidade Positivo.

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