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Aristides de Sousa Mendes ajudou milhares de judeus durante o Holocausto.
Aristides de Sousa Mendes ajudou milhares de judeus durante o Holocausto.| Foto: Reprodução

Desde muito cedo, o Brasil aparece no horizonte da evolução da carreira diplomática e consular dos gêmeos Aristides e César de Sousa Mendes, por razões históricas e diria mesmo familiares. Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches nasceu em 19 de julho de 1885, alguns minutos depois de seu irmão gêmeo César. A família paterna tinha já tido uma ligação com um tal José Egydio de Sousa Aranha no início do século 19, por motivos ligados à presença de dom João VI no Brasil, tendo ficado a tradição e referências a esse parente em notas pessoais em casa de César e em livros de genealogia devido a um certo parentesco. O pai de Aristides e César foi José de Sousa Mendes, juiz de Direito e da Relação de Coimbra, possuindo também uma licenciatura em Teologia, ficando nos arquivos do Ministério da Justiça com uma classificação rara: “Óptimo!”

A mãe dos gêmeos, Maria Angelina do Amaral e Abranches, era também descendente de uma família de juristas, do qual se destaca Roque Ribeiro de Abranches Castelo Branco, herói do Liberalismo e um dos “Pais” da primeira Constituição portuguesa de 1822, o que terá sido uma das forças a ligarem os dois gêmeos ao respeito pelo Estado de Direito.

Aristides e César foram sempre estudantes de topo, tal como o irmão José Paulo, dez anos mais novo. Ambos interessaram-se pelas relações internacionais e em 1910, com 25 anos apenas, apresentaram-se às provas de admissão à carreira diplomática, tendo-se classificado ex-aequo, com mais cinco candidatos nos primeiros lugares. Ao fim de um mês de estágio no Ministério dos Negócios Estrangeiros, César foi nomeado para o Pará; Aristides, para a Guiana Britânica (seria cônsul em Georgetown), que em comum com o Brasil é banhada por um braço do Amazonas. Este primeiro ano de adaptação à vida longe de casa foi duro para Aristides e sua esposa Angelina, por terem deixado o primeiro filho em Portugal com os avós. Nesse primeiro ano afirmou várias qualidades de trabalho e personalidade, nomeadamente o zelo e a solidariedade para com os seus compatriotas em Portugal: tendo havido uma terrível crise de fome na Ilha da Madeira, em 1911, promoveu uma campanha de coleta de fundos para apoio às famílias mais necessitadas.

Em 1912, após ter passado uns tempos em Portugal em serviço no Ministério, em Lisboa, Aristides foi nomeado cônsul-geral em Zanzibar, um domínio britânico na África Oriental Inglesa, hoje fazendo parte da Tanzânia. Para este posto, Aristides até estudou a língua de origem da população local, o swahili (também falado em Tanganica e no Quênia). O seu interesse pela cultura local valeu-lhe a amizade do sultão, que, apesar de ser islâmico, quis ser padrinho de batismo de um dos filhos do cônsul que havia nascido em Zanzibar. Durante um certo tempo, Aristides também representou os interesses da Itália nessa ilha devido à falta de cônsul italiano. E assim chegaram a 1918. Aristides foi nomeado para Curitiba, no Brasil, e ei-los de novo em viagem sem passarem por Portugal.

Em 1919 César, seu gêmeo, apareceu no Rio de Janeiro como encarregado de negócios junto à embaixada de Portugal na então capital brasileira. César vinha de Tóquio, no Japão, onde tinha passado os últimos quatro anos nessa função diplomática e representado Portugal na entronização do imperador Hiroito. Para Aristides e a mulher, foi como um verdadeiro milagre, um momento de rara felicidade numa época em que não havia linhas aéreas, em que as viagens se faziam em navios a vapor e demoravam semanas e meses! As comunicações telefônicas não tinham nada a ver com a tecnologia existente hoje; e, de repente, o seu gêmeo, que o acompanhava desde o ventre da mãe, estava aí mesmo à porta, “à mão de semear”...

Aristides e Angelina partiram de Curitiba com seus sete filhos o mais depressa possível, e foram passar uns dias no Rio. Levavam com eles a mais nova: Joana, “a rebelde”, a “teimosa” ou, ainda “ a brasileirinha”, a filha que tinha vindo ao mundo em Curitiba e que viria a desempenhar um papel de importância máxima no reconhecimento do gesto salvador de seu pai durante o conflito apocalíptico mundial que seria deflagrado 20 anos depois, em setembro de 1939. Aristides e Angelina iam com quatro filhos nascidos em Zanzibar, três em Portugal e um no Brasil. César e Maria Luisa vinham com quatro dos seus cinco filhos: uma nascida em Portugal, outra na Espanha e dois no Japão, tendo o mais velho ficado em Portugal com os avós.

Em 1920, os gêmeos tornam a encontrar-se finalmente em Portugal, dez anos depois de terem partido para as suas respetivas “peregrinações”. No fim daquele ano, Aristides mais uma vez faz apelo à sua solidariedade de irmão e pede uma licença especial ao Ministério dos Negócios Estrangeiros para acompanhar o irmão César a Berlim, para onde este fora nomeado na mesma altura em que sua esposa Maria Luisa falece devido a complicações pós-parto do seu sexto filho. Se não fosse a solidariedade de Aristides, seu irmão teria abandonado a carreira aos 35 anos...

Em 1921, é a vez de Aristides continuar a sua, desta vez na América do Norte, onde, além de Angelina lhe ter dado mais dois rapazes, Francisco e Sebastião (nascidos em 1922 e 1923), Aristides cria a cadeira de Língua e Cultura Portuguesa na Universidade da Califórnia em São Francisco (Berkeley). A comunidade portuguesa da Califórnia presta-lhe uma belíssima homenagem pelos serviços prestados, quando, em 1925, novamente parte para o Brasil, desta vez para Porto Alegre, onde mais uma “brasileirinha” vem ao mundo: Teresinha do Menino Jesus. Sua jornada continua em Lisboa, Vigo (na Galícia) e Antuérpia (Bélgica) – neste posto, Aristides vai permanecer por nove anos, será nomeado decano do corpo consular e encontrará pessoas que serão determinantes para a sua decisão de 1940 em Bordeaux. Foram anos que, devido à estabilidade, permitiram à família desenvolver muitos talentos acadêmicos e artísticos. Fizeram-se muitas amizades e também houve sofrimento com a perda de dois filhos.

Em 1933, com a subida de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, soaram muitos sinais de alerta para o iminente perigo de deflagração de uma guerra. Em Antuérpia começaram a aparecer cada vez mais pessoas pedindo ajuda a Aristides de Sousa Mendes, que conhecia muitas personalidades e companhias de navegação, além de ter um bom sentido das coisas, boas intuições. Um dia encontrou-se, não sei como, com Albert Einstein. Falaram muito dos tempos que se viviam e até a nossa família o encontrou. Meus tios e tias contaram-me como se emocionaram ao ver o grande cientista! Por acaso, naquele ano de 1933, o irmão dez anos mais novo dos gêmeos estava em estágio em Antuérpia e, como era oficial da Marinha, forte em matemática e ciências, terá tido uma conversa “animada” com o sábio!

Em 1938, Aristides de Sousa Mendes deveria ter sido promovido a ministro plenipotenciário, pois era o funcionário mais antigo da sua categoria a preferir a promoção. Existe uma carta a Salazar na qual meu avô expõe exatamente isso. Só que Salazar, acumulando as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros e presidente do Conselho, inexplicavelmente, nomeia-o para um posto da mesma categoria que tinha em Antuérpia (cônsul-geral), mas em Bordeaux! No entanto, ordens são ordens, e são para cumprir!

A família mudou-se para esta cidade francesa em setembro de 1938; um ano depois, em 1.º de setembro de 1939, Hitler desencadeia a Segunda Guerra Mundial e meu avô, começa a compreender por que razão fora enviado a Bordeaux – e não havia sido por causa de seus famosos vinhos. De fato, os primeiros casos de refugiados vão aparecendo e Salazar vai subindo as restrições para atribuição de vistos de entrada em Portugal. Em novembro de 1939, publica-se a mais famosa – e também a mais iníqua – circular, a de número 14, proibindo aos cônsules de carreira de passarem vistos a “judeus expulsos dos seus países de origem ou dos países de onde provêm”. Por trás desta circular estava, além de Salazar, o comandante da PVDE (a polícia antecessora da Pide), o capitão Agostinho Lourenço, em plena ascensão.

Nos meses que antecederam a invasão da França e de Paris, foram frequentes os episódios em que Aristides foi interpelado nas ruas do centro de Bordeaux por refugiados desesperados e por famílias, uma das quais a família do rabino Kruger. Ficaram amigos, e foi este rabino quem, em 1952, escreve, a pedido de Joana (a filha de Aristides nascida em Curitiba), uma carta ao Yad Vashem testemunhando o seu encontro com Aristides em 1940. Houve encontros com cada vez mais pessoas e relatos impressionantes de fuga de campos de trabalhos e de morte (campos de concentração que, na realidade, existiam desde 1933, com a subida de Hitler ao poder). Meu avô pressentia que, a qualquer momento, seria confrontado com uma questão interna: obedecer à ordem de Salazar, a Circular 14, ou ao imperativo de consciência, desobedecendo seu governo.

Foi uma preparação gradual. Em casa, também a minha avó Angelina se preparava para esse encontro com o destino. Em inícios de junho de 1940 a esmagadora máquina nazi entrou na França; Paris caiu a 14 de junho. Sobre esse momento de horror existem muitos documentos escritos e imagens de arquivo descrevendo o desespero e a morte. Aristides conhecia muitos diplomatas estrangeiros em posto na região – um deles também considerado “Justo entre as Nações” e brasileiro, Luís de Sousa Dantas. As assinaturas destes dois homens salvaram pessoas, não nos esquecendo de Aracy Guimarães Rosa, em Hamburgo, de quem me falara o biógrafo de meu avô, o luso-canadense Rui Afonso.

A visita de Hitler a Paris e à Torre Eifel é o aviso para meu avô: “prepara-te, homem, é uma questão de horas, eles estão aí!” Salazar não respondia aos numerosíssimos pedidos de autorização para assinar vistos de entrada em Portugal. Aristides estava só perante a morte de inocentes e a sua consciência. Em 17 de junho, pelas 6 da manhã, levanta-se e pede a ajuda preciosa de sua mulher, minha avó, dizendo-lhe: “antes com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus”. Depois, disse a seus subalternos e a outros: “Não participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar! Vou dar vistos a todos os que quiserem: não há mais raças nem religiões!” Com esta frase, meu avô assinava a sua sentença!

A 30 de outubro de 1940, veio o castigo de Salazar pela sua desobediência, passando vistos a refugiados de guerra: “Condeno o cônsul ASM a um ano de inatividade com direito a metade do seu vencimento, devendo em seguida ser aposentado!” Foi uma pena ilegal inexistente na ordem jurídica da época; mas, quando se tem o poder na mão, tudo vale. Curiosamente, esta ordem não foi cumprida e meu avô faleceu 14 anos depois, em 3 de abril de 1954, aguardando aposentadoria e recebendo uma pensão provisória que lhe chegava às mãos já desfalcada, pois o Estado deduzia-lhe “custas judiciárias” pelos processos que Aristides tinha interposto com esperança de obter (alguma) justiça, um dia.

Os refugiados que conseguiam um visto para Portugal tinham, depois, de obter outro visto para atravessarem a Espanha para poderem entrar em Portugal. A maioria entrou de trem por Vilar Formoso e jornais da época indicam a presença de milhares de refugiados em trens à espera de serem vistoriados pela PVDE. Quantos seriam? Meu pai (sexto filho de Aristides e Angelina, nascido em Zanzibar em 1917), como testemunha desta tragédia e destes tempos, sempre me falou em 30 mil pessoas; a historiadora Irene Pimentel, especialista no Estado Novo, indica, em obras suas, dados da PVDE na ordem dos 38 mil ou mais. Isso não quer dizer que todas essas pessoas viessem com vistos assinados por meu avô Aristides, mas podemos dizer que ele, com a sua rebeldia, abriu a “rota da fuga e do asilo” a muitos milhares. Mostrou que, apesar das medidas restritivas do governo de Salazar, ainda se puderam salvar pessoas.

A vida de meus avós, até a morte, foi de grande sofrimento e dificuldades, mas com paz de consciência; sabiam que tinham feito tudo o que puderam para salvar seres humanos da barbárie, obedecendo à voz da consciência – “à voz de Deus!”, como ele dizia.

António Pedro de Moncada de Sousa Mendes é formado em Ciência Política, mestre em Língua e Teatro Russo pela Universidade de Montreal (Canadá), professor universitário, intérprete e autor de peças de teatro.

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