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Para os que gostam de interpretar profecias, a guerra aberta entre o Estado e a bandidagem no Rio de Janeiro tem um toque bíblico, da Batalha de Armagedon. A Babilônia moderna, com seus morros (os sete montes do Apocalipse?) dominados por traficantes e milicianos (a grande prostituta cheia de imundícias?), vê subir a fumaça de seu incêndio. E o Bope do mítico Capitão Nascimento envergar as túnicas brancas de linho puro cingidas por cintas de ouro dos anjos das sete pragas. Ao fundo, a população intimidada, esperando que a Besta seja derrotada.

Exageros à parte, chegou o momento da verdade no combate ao crime no Rio de Janeiro. Depois de décadas de impotência e de perplexidade cúmplices, o governo fluminense está fazendo o que o personagem Howard Beale do filme Rede de Intrigas fez: gritar que está louco da vida e que não engolirá mais aquilo: "I’m mad as hell and I’m not going to take this anymore!". Agora, começam os sinais de que a população, tal qual no filme, também abre a boca para gritar que está definitivamente cheia de tudo "aquilo", de tergiversão, cinismo da classe política, metafísica vazia dos intelectuais de plantão, pseudoexplicações pedantes e inócuas a respeito da sociologia do crime, impunidade, impotência e submissão resignada aos criminosos. A população quer ordem, tranquilidade para viver sem ser achacada nem intimidada a cada dia, em cada esquina.

Finalmente, o Estado resolveu fazer o que deveria ter feito desde o primeiro dia, que era restaurar sua autoridade em todos os lugares do Rio de Janeiro. Até que enfim, decidiu recuperar o monopólio da violência legal, acabando com os governos paralelos e a "justiça" sumária de criminosos, perseguindo-os, desestabilizando-os, cortando suas fontes de renda, retomando o território a ferro e fogo e restaurando um mínimo de lei nas comunidades.

Fogo de palha? Apenas um interregno na luta inglória contra a Besta carioca que reaparecerá em outros lugares? Pode ser, mas alguns sinais são animadores. Até que enfim, as forças de segurança pararam de fazer o jogo de esconde-esconde e de filigranas jurídicas, para se unir e atuar. Na tevê viu-se o blindado da Marinha passar sobre um carro com a facilidade que se esmaga uma barata. Alguns acharão um exagero, uma reação desproporcional à violência dos bandidos. Não é. É a demonstração visível do poder estatal, um recado explícito de que os limites convencionais da tragédia cotidiana do Rio de Janeiro, da "polícia subindo o morro versus ladrões entrincheirados", foram ultrapassados e que agora a luta dos bandidos será aberta e contra inimigos institucionalmente mais fortes e decididos. Recado, aliás, entendido imediatamente pela marginália, que, em hordas, passou a fugir para os morros vizinhos.

Outro sinal promissor é a união entre o poder Executivo e o Judiciário fluminense para golpear os chefes ocultos da criminalidade que, apesar de presos em regime de segurança máxima, continuam a comandar a bandidagem com inacreditável desenvoltura, auxiliados por um batalhão de advogados, assessores e familiares. O judiciário do Rio de Janeiro também está dando seu grito de "I’m mad as hell!" e parece finalmente disposto a emascular a criminalidade, em vez de simplesmente, tratá-la a unguentos e chazinhos de erva cidreira como é o costume. Transferir os bandidos para longe de suas bases, no mínimo, encarece e complica o funcionamento dessas redes deletérias de apoio.

Não há dúvida que, a esta altura, uma enxurrada de tentativas judiciais para aliviar a vida dos criminosos e de marketing para chocar os espíritos mais sensíveis com a "brutalidade do Estado" será mobilizada. Espera-se que o governo e a população se mantenham firmes e como Chico Buarque, peçam que deixem em paz seu coração, pois qualquer desatenção pode ser a gota d’água. De minha parte, espero que a água já tenha transbordado pois, como Howard Beale, eu também estou "mad as hell and I am not going to take it anymore!".

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUCPR.

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