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"Há algo de podre no reino da Dinamarca" – com esta sentença tão afirmativa, o príncipe deixou de lado suas indecisões e iniciou a vingança. Mas William Shakespeare, autor da famosa tragédia e da candente denúncia, continua sendo endeusado e encenado no país que denegriu como, aliás, em todo o mundo. Não há notícia de explosões populares, nem de ataques à embaixada britânica em Copenhague por nacionalistas dinamarqueses nestes quatro séculos desde que a "Hamlet" foi publicada.

Shakespeare, aliás, é mestre na arte dos preconceitos. Seu antijudaísmo é clássico, o Shylock do "Mercador de "Veneza" é um estereótipo infame, mas o autor e a obra jamais foram banidos, censurados, vilipendiados. O bardo de Strattford é, sim, um caso de estudo sobre genialidade e ignorância já que no tempo em que viveu não existiam judeus na Inglaterra – foram expulsos em 1290 – e, ao que se saiba, Shakespeare jamais cruzou o canal da Mancha.

Uma reportagem publicada pelo New York Times nesta sexta-feira e assinada por Hassan M. Fattah finalmente ilumina alguns pontos obscuros da nada engraçada "Guerra das Charges". Em dezembro, em Meca, os 57 países-membros da Organização da Conferência Islâmica examinaram o caso da publicação, meses antes na Dinamarca, das caricaturas ofensivas ao profeta Maomé e ao islamismo.

E, a partir desta reunião, a repulsa aos 12 desenhos foi oficializada e sacralizada. A ofensa à consciência individual dos muçulmanos foi convertida em reação política multinacional. O que seria um protesto legítimo de países unidos pela fé ganhou as ruas engrossado pela máquina da propaganda oficial em países cuja mídia é majoritariamente censurada. A republicação em janeiro das charges dinamarquesas por jornais europeus foi uma oportunidade de ouro para acender o estopim.

As charges são ofensivas. Confrontam o espírito iluminista em cima do qual construiu-se a Europa contemporânea. Passam ao largo da tolerância, da civilidade e da convivência que marcam as democracias. A insistência em republicá-las mostra que alguns jornalistas do primeiro mundo não conseguem entender a perplexidade manifestada nos anos noventa pelo escritor franco-espanhol, Jorge Semprun: "o problema da liberdade de expressão é uma das questões irresolvidas da democracia."

Irresolvida mas resolvível: basta pensar duas vezes antes de publicar uma caricatura, uma manchete, uma foto, uma legenda, uma pequena notícia. Ou até mesmo uma palavra.

Difícil saber qual o saldo da atual crise, mas um dos seus ingredientes principais já é visível: a politização da religião, a massificação de uma revelação espiritual como instrumento para a conquista de poder. O fenômeno não é novo considerando-se que a maioria das guerras dos últimos 5 mil anos foram guerras "santas" nas quais o interesse nacional combinava-se à ambição da hegemonia religiosa.

As conversões forçadas, as perseguições e os massacres religiosos são parte importante da história da humanidade. Imaginou-se que ao separar as esferas religiosas das políticas e ao consagrar as noções de secularismo e laicismo como fundamentos dos estados modernos resolvia-se o multimilenar problema da convivência entre cultos e culturas.

As teocracias de diferentes matizes aí estão para exibir o fracasso dos belos ideais iluministas que compreendiam também um abrandamento das ortodoxias. Os diferentes fundamentalismos aí estão para mostrar que o ser humano, não contente com suas experiências espirituais, necessita reforçá-las impondo-as a outros. O proselitismo religioso pode ser visto como solidariedade mas também como tentativa de dominação. Neste sutil processo de transferir a esfera íntima para a esfera coletiva cria-se a inevitável competição e o perverso uso político das crenças.

Na apodrecida pátria de Hamlet gestou-se o famoso "Ser ou não ser", expressão máxima da busca da verdade. E no furioso confronto de sacrossantas certezas iniciado na Dinamarca fica patente que as dúvidas podem ser a solução.

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