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As forças armadas são o poder moderador da República?
| Foto: Felipe Lima

Desonesta leitura da Constituição

Francis Ricken

Nas últimas semanas, surgiu uma nova e falsa polêmica relacionada ao papel das Forças Armadas como gestoras de conflitos entre os Poderes da República, com base numa leitura acrobática do artigo 142 da Constituição.

A função das Forças Armadas está inserida no título que trata sobre a “defesa do Estado e das instituições democráticas”, e estabelece a existência de instituições capazes de defender a ordem, quando necessário, mas sem a possibilidade do uso de forças militares como influenciadoras das instituições e da política, assim como em todo país razoavelmente sério.

As Forças Armadas nunca tiveram o papel de moderação ou institucional como Poder. O único momento da nossa história que tal situação aconteceu foi durante uma ditadura. É um tanto quanto ingênuo ou maldoso fazer uso do texto constitucional como uma biruta, que gira de acordo com o sabor dos ventos. Quem o faz, deve estar motivado por interesses não democráticos.

A Constituição deixa claro que as Forças Armadas estão submetidas orçamentária e administrativamente ao Poder Executivo e qualquer tipo de mudança em seu efetivo estão vinculadas à competência do Congresso Nacional, ou seja, nada sobre um possível poder moderador. Aliás, tudo o que foge da lógica da tripartição de poderes e de seu equilíbrio, presente no artigo 2º da Constituição, deve ser considerado excepcional à ordem vigente e perigoso para a democracia.

Não existe espaço para rearranjos de regras já estabelecidas e claras, como se fossem permitidas interpretações à revelia dos entendimentos do STF, da manifestação do Poder Legislativo, ou até mesmo de conhecimento sobre a história da Assembleia Nacional Constituinte.

Em 1987/1988, nossos Constituintes tinham como um dos principais objetivos restabelecer um regime democrático – e se opuseram claramente ao modelo constitucional ditatorial de 1969/1967, esse sim, permissivo à utilização das Forças Armadas de maneira atípica.

O modelo constitucional de 1988 não permite a interferência das Forças Armadas no Congresso Nacional, no Poder Judiciário e tão pouco como moderador de conflitos institucionais. Nossos Constituintes não tiveram o intuito de permitir tal situação, afinal estabeleceram um modelo democrático claro e, quando afirmamos o contrário, recontamos a história de forma a inventar trechos que nunca existiram.

É assustador que, em pleno ano de 2020, o STF tenha que reafirmar o óbvio, dizendo que os limites políticos devem existir, que os Poderes estão em igualdade de condições e que vivemos em um Estado Democrático, sem poder moderador das Forças Armadas.

Dentro de Democracias, os conflitos entre os Poderes são normais e saudáveis para a reafirmação da existência do modelo constitucional. Em mais de trinta anos de Constituição democrática tivemos poucos problemas relacionados a essa administração, afinal, havendo um pouco de trato e interesse entre os Poderes, temos diversos mecanismos constitucionais capazes de solucionar conflitos.

Os problemas surgem quando temos um líder político que gosta de vencer no grito. Nessa situação, é papel dos Poderes limitar seus rompantes e dizer qual o seu lugar, um claro momento em que a Constituição vence o poder político e modera o conflito entre poderes.

Francis Ricken, advogado e mestre em Ciência Política, é professor da Escola de Direito eCiências Sociais da Universidade Positivo.

A garantia da lei e da ordem e o art.142 da Constituição

Ives Gandra da Silva Martins e Samantha Meyer-Pflug Marques

O teor do art. 142 da CF/88 tem suscitado inúmeras polêmicas e interpretações equivocadas que o compreendem como uma possibilidade de intervenção militar e quebra da ordem constitucional. No entanto, para compreender a sua finalidade, é necessário verificar o contexto no qual está inserido, que é justamente o do Título V que trata da “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, portanto, por consequência lógica seu conteúdo está atrelado a defesa e manutenção das instituições democráticas e não ao fim delas.

O dispositivo é claro ao estabelecer que as Forças Armadas, com fundamento na hierarquia e disciplina, destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes Constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes da lei e da ordem. Constata-se o exercício de uma tríplice função: defender à Pátria, garantir os Poderes e garantir a lei e ordem por iniciativa dos três Poderes. Nesta última, atribuiu o Texto Constitucional expressamente às Forças Armadas um papel de poder moderador, na medida em que está autorizada a atuar a pedido dos três Poderes para garantir a lei e a ordem e assim assegurar a separação e a harmonia entre eles.

Foi essa a finalidade do dispositivo constitucional a de incluir, em hipóteses excepcionais, a atuação das Forças Armadas para o restabelecimento da normalidade. Essa interpretação é rechaçada por grande parte dos juristas, que veem nesse artigo uma possibilidade de intervenção militar e atribuem o papel de Poder Moderador ao STF. No entanto, tal mister não pode ser exercido pela Corte Suprema, uma vez que diferentemente do que ocorre nos Países Europeus, no qual o Tribunal Constitucional não integra o Poder Judiciário, no Brasil o STF é órgão de cúpula do Judiciário, assim sendo não pode exercer o papel de poder moderador.

Não se trata aqui de quebrar a ordem constitucional, ou de um golpe, até porque historicamente os golpes não dependem de lei autorizadora, pois rompem com o ordenamento jurídico, muito menos das Forças Armadas substituir o papel desempenhado por um dos poderes, mas sim de uma intervenção específica e pontual, que se dá em virtude da solicitação de um dos poderes, com o único intuito de restabelecer a lei e a ordem, ou seja, a normalidade, garantindo-se assim a livre atuação dos poderes constituídos.

Tal intervenção se daria apenas naqueles casos em que não há outra solução constitucionalmente prevista, como na hipótese (que duvidamos que venha a acontecer) de, apesar da manifestação contraria do Procurador Geral da República, o STF decidisse por apreender o celular do Presidente da República. Ele se veria obrigado a cumprir uma decisão judicial que colocaria em risco questões de soberania nacional, assuntos sigilosos e de repercussão nacional e internacional que são tratados pelo Chefe de Estado, com consequências desastrosas para a governabilidade do País.

Nesse caso, não restaria outro instrumento ao Presidente do que valer-se do art. 142 e solicitar às Forças Armadas o não cumprimento da decisão do STF. Em nenhum momento estariam as Forças Armadas substituindo a função do STF, mas somente atuando de maneira pontual, por solicitação do Poder Executivo para restabelecer a lei, a ordem e a governabilidade do País.

A separação e a harmonia entre os Poderes são essenciais para a manutenção do Estado Democrático Direito, e em face dessa harmonia é que se outorgou em casos específicos e pontuais a função de Poder Moderador às Forças Armadas, para garantir a defesa do Estado e das Instituições Democráticas.

Ives Gandra da Silva Martins é professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi professor titular de Direito Constitucional. Samantha Meyer-Pflug Marques é professora titular de Direito Constitucional da Universidade Nove de Julho (Uninove).

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