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As velhinhas da Semana Santa: polêmica sobre os ritos e celebrações desses dias
| Foto: André Rodrigues / Gazeta do Povo

Sexta-feira santa. São as quatro da tarde. Você se aconchega no sofá depois de um churrasco regado a cerveja, desfrutando do feriado na companhia dos tios que vieram visitar a família. De repente, umas vozes de velhinhas não muito afinadas ressoam do outro lado do portão. As vozes crescem em intensidade, e você reconhece um hino tradicional católico entoado pelas pessoas que desfilam na rua, seguindo uma cruz enquanto jovens vestidos de soldados os acompanham. Não é necessário se levantar para entender o que está acontecendo. Contudo, um leve sentimento de irritação ou talvez compaixão invade sua mente. No final, se você não está na rua com eles, provavelmente o catolicismo não é a sua preferência. Se você não é cristão, poderá pensar que essas procissões são um pouco antiquadas. São para pessoas simples que ainda não descobriram a inutilidade da religião, e se agarram a gestos e tradições para dar um pouco de sentido à vida: “o ópio do povo”, falava Marx. Talvez você sinta vontade de sair à rua e explicar aos católicos que louvar a Deus consiste numa fé profunda, no segredo do coração e na vida quotidiana, que nas Escrituras não há todo esse show mais parecido com superstição do que com culto verdadeiro. O problema é que essas velhinhas não são apenas daqui.

Boulogne, Paris, 24 de março de 2024. Domingo de manhã. Na cidade de Voltaire e de Diderot, a cidade das Luzes, da filosofia moderna. Dessa vez as velhinhas não andam atrás de uma cruz, mas de um burro. E acima do burro está um cara vestido de vermelho com um galho na mão. Os turistas asiáticos que passeiam pelas ruas seguem com os celulares tão estranha cena: “provavelmente alguma velha tradição francesa”, pensarão. O curioso é que não são apenas as nossas velhinhas, mas uma multidão de famílias, jovens e crianças que andam com seus galhos na mão pela rua do centro da cidade. 

Por que tanta gente? Nessas cerimônias, que muitos consideravam talvez como vestígios do passado, destinados a desaparecer junto com os últimos adeptos de uma fé superada. E o fenômeno não parece estar acabando: a procissão do Corpus Christi em Curitiba, no ano passado, com suas 120 mil pessoas participando, deixa isso claro. Talvez a sabedoria das velhinhas – e as não tão velinhas – que frequentam essas celebrações e ritos tenha algo a me questionar.

Podemos tentar ignorar essa gente que segue uma fé superficial, e provavelmente nem conseguiriam argumentar muito bem sobre a existência de Deus; podemos preferir nossa relação íntima e espontânea com Jesus em vez de rituais estabelecidos há décadas; podemos até – no fundo, sem reconhecê-lo abertamente – desprezar um pouco esses católicos simples, “que não entenderam direito a mensagem de Jesus e o modo certo de segui-Lo”. O problema é que quem começou tudo isso foi Ele mesmo. 

Talvez a sabedoria das velhinhas – e as não tão velinhas – que frequentam essas celebrações e ritos tenha algo a me questionar

Um Deus onipotente, que criou tudo do nada, não podia salvar os homens com um estalar de dedos? Ou transmitir diretamente do céu as Sagradas Escrituras como manual para uma vida feliz? Por que se dar o trabalho de virar ele mesmo um homem em meio a um povo insignificante dentro do vasto Império Romano, viver 30 anos aprendendo e praticando um ofício que nem ia servir para a Redenção, dedicar três anos tentando transformar uns pescadores rudes e simples em pregadores de sucesso, e acabar morrendo miseravelmente como um escravo numa cruz? A resposta é bem conhecida pelas velhinhas depois de anos de vida: o amor não se constrói apenas com sentimentos espontâneos, um matrimônio não se sustenta a base de ideias e filhos não são educados somente com argumentos sólidos. A vida se manifesta através de gestos, de ações concretas. O amor necessita de tradições, de rituais simples e marcantes. E a religião também. Pelo menos a religião cristã. Afinal, será que as velhinhas compreenderam melhor como funciona Deus?

Padre Matthieu Boo d'Arc, sacerdote da congregação dos Legionários de Cristo.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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