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A figura do juiz, a noção de justiça, de leis e o rito do julgamento constituem os elementos precursores da civili­­zação do convívio, base da nossa existência

Instalados num trem-bala só sabemos de onde viemos e para onde vamos, o resto se dilui na velocidade. Eric Hobsbawm, passageiro diferenciado, reúne atributos de esmerado historiador, atento memorialista e invejado sobrevivente, por isso designa o seu percurso como "tempos interessantes". Infelizes são os que não conseguem enxergar paragens, passagens, curvas e nuances. Agradam-se apenas com a palpitação do trajeto.

A morte do déspota líbio Muamar Kadafi interrompe uma violência que estendeu-se ao longo de 42 anos, mas assusta tanto quanto o terror que implantou intramuros e exportou além-fronteiras. Ferido, foi assassinado pelos rebeldes que o capturaram dentro de uma tubulação de águas pluviais. O tirano Saddam Hussein, também foi pego – enfiado num estreito poço – ao menos foi julgado.

A primavera que deveria clarear as margens do Mediterrâneo tem algo de invernal, veio penosa, encharcada de uma violência que, imaginava-se, seria a primeira a ser controlada. A figura do juiz, a noção de justiça, de leis e o rito do julgamento constituem os elementos precursores da civilização do convívio, base da nossa existência. Todos atropelados por este sistema de ferozes desforras que se supunha interrompido.

Numa sexta-feira de manchetes vibrantes, ensanguentadas, num mundo cada vez menos diferenciado, curiosa foi a do espanhol El País – "El fin del terror" – que não se referia ao circense Kadafi. A Espanha (e também a França) está exultando com a capitulação do ETA à luta armada.

Depois de 43 anos de insanidade e 829 mortos, o bando terrorista (Euskadi Ta Askatasuna, Pátria Basca e Liberdade), um dos paradigmas do banditismo político contemporâneo, propõe num vídeo protagonizado por três etarras encapuzados – ridículos, medievais – o início de um processo de diálogo. O presidente do governo espanhol, o socialista José Luis Zapatero saudou a decisão sem esquecer seus compromissos: "Agora temos uma democracia sem terrorismo, mas não desmemoriada. A memória das vítimas nos acompanhará para sempre".

O desassossego do mundo não está na crise econômica, ela apenas o atiça e socializa. A violência política é o grande fantasma porque conseguiu viabilizar a guerra absoluta, total, sem grandes investimentos em tecnologias e fabulosas armas de destruição em massa. A mais letal delas, é o suicídio. Combinado ao fanatismo político, religioso ou antirreligioso (o ETA era antifranquista, anticomunista e laico), torna-se imbatível.

O processo bi ou trimilenar que resultou na civilização do convívio tem sido interrompido por periódicas catástrofes bélicas e testado logo em seguida em tênues experiências pacificadoras. A delinquência política abomina as aproximações: universalizou o campo de batalha, transformou cada esquina em trincheira.

A troca do soldado israelense Guilad Shalit por mil prisioneiros palestinos, majoritariamente sentenciados por terrorismo, acrescenta-se a de forma dramática a este quadro. Os céticos viram na decisão israelense uma capitulação ao terrorismo, os idealistas creditam-na ao compromisso de um estado democrático com a segurança de seus cidadãos, militares ou civis.

O governo de Benjamin Netanyhau, até agora insensível aos esforços mundiais para a resolução pacífica do conflito palestino-israelense e intransigente adepto da doutrina do "olho por olho", viu-se obrigado a aceitar as exigências dos sequestradores. Isolado no cenário internacional, porém vencido pela solidariedade nacional, esqueceu as cerca de 700 vítimas dos terroristas libertados, para salvar a vida do jovem sargento.

No vale-tudo do fanatismo, valeu esta sofrida nobreza. O assassinato de um prisioneiro de guerra ferido – por mais monstruosas que tenham sido suas ações – não combina com a imagem de primavera e recomeço. No grande confronto entre desumanização e humanização que assistimos em nossa vertiginosa viagem, é um retrocesso.

Alberto Dines é jornalista.

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