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O ministro Luís Roberto Barroso, que teve toda a sua presidência de dois anos para pautar o tema do aborto e não o fez, resolveu, no apagar das luzes de seu mandato, deixar um rastro de sangue em três ações que tratam do tema. E não pautou o assunto em sua presidência porque, diferentemente do que disse – que seria porque o Brasil não estaria preparado para tratar do assunto –, na verdade tinha certeza de que não teria os votos necessários para liberar o aborto no Brasil, como pretendia na ADPF 442, que libera o aborto até 12 semanas de gravidez. A imprensa noticiou, baseada em fontes, que ele contava apenas com o voto de, no máximo, dois ministros.
Menos mal que Barroso optou por deixar fora de seus votos sobre aborto o da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.141, que versa sobre a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) – da qual o primeiro autor deste artigo é relator – e que proíbe a assistolia fetal para matar bebês acima de 22 semanas de gravidez. Iremos discutir, neste artigo, detalhes de seus votos nas três ADPFs (442, 989 e 1.207), que mais parecem propagandas panfletárias da defesa da liberação do aborto do que algo técnico, como se espera de um juiz da mais alta Corte do país.
A ADPF 442 versa sobre a liberação total do aborto em gestações menores de 12 semanas. Basta a mulher desejar abortar e terá seu desejo atendido. Não é preciso dizer o potencial de o aborto virar método contraceptivo caso seja aprovado. Em 2018, no STF, o primeiro autor deste artigo, em audiência pública, mostrou os riscos dessa aprovação. O absurdo do voto se inicia quando o pedido para a sessão extra do STF se baseia em uma suposta urgência pela aposentadoria iminente do ministro. A questão é que a urgência, no regimento do STF, refere-se a questões do caso em discussão, e não a motivo pessoal dos ministros.
Mas avaliemos os argumentos do voto de Barroso sobre aborto, que estão em, pasmem, somente duas páginas. O voto de sua vida está em meras duas páginas. São esses os únicos argumentos supostamente técnicos – o resto é discussão filosófica e identitarismo.
Em nossa opinião, o aborto no Brasil é fácil até demais de ser realizado. Sem contar que se instituiu que, no Brasil, o aborto com excludente de punibilidade nos casos de estupro e anencefalia é um direito – mas isso não está previsto na legislação. Código Penal não confere direitos. Não ser punível não é sinônimo de ser direito
O ministro Barroso afirma que pesquisas endossadas pela Organização Mundial da Saúde documentam que a criminalização não diminui o número de abortos, mas apenas impede que eles sejam feitos de forma segura. Porém, as estatísticas são inequívocas em demonstrar que a legalização do aborto aumenta o número de abortos quando comparados os períodos antes e depois da liberação. Isso ocorreu no Uruguai recentemente, em Portugal e em todos os países que liberaram o aborto. No Uruguai, por exemplo, desde a liberação (2013), os números aumentam ano a ano, sem exceção.
Dada a taxa de mortalidade de abortos legais no Brasil, a liberação aumentaria a mortalidade de mães e os custos do SUS, além de provocar um caos nas maternidades estatais já lotadas. Mulheres que hoje mal têm leitos para parir e sofrem com recursos escassos correriam ainda mais riscos, tendo de competir com um crescente número de mulheres que desejariam abortar.
Em outro argumento, Barroso sustenta que as mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia e autodeterminação para fazer suas escolhas existenciais, tendo o direito fundamental à liberdade sexual e reprodutiva - fica claro o objetivo de transformar o aborto em método contraceptivo. Além disso, o ministro se aventura num exercício de ficção ao afirmar que, se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado como crime há muito tempo.
Barroso também defende que a interrupção da gestação deve ser tratada como questão de saúde pública, não de direito penal. Mas o aborto não é problema de saúde pública como diz Barroso. Os defensores da descriminalização do aborto tradicionalmente utilizam dados falsos, exagerando o número de mortes e internações decorrentes da realização de abortos ilegais. As mortes maternas por aborto, por exemplo – que alguns chegam a afirmar ser de até 70 mil por ano –, na verdade estão entre 50 e 70 mortes por ano, somando todos os tipos de aborto, incluindo os feitos pelo Estado, que têm mortalidade maior do que a mortalidade materna dos partos. Por definição, um problema de saúde pública é algo que tem impacto na sociedade por meio de mortalidade aumentada, morbidade, custos do tratamento e potencial epidêmico em caso de infecções.
Em relação à ADPF 989, o primeiro autor deste artigo foi o responsável pelo documento que lhe deu início, em 2022, proposta pela Abrasco, pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pela Rede Unida, questionando o papel sistemático que a União tem exercido no rebaixamento do direito ao aborto nos casos previstos em lei. A ação, segundo essas associações, foi motivada pela publicação, pelo Ministério da Saúde, do documento Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”. O manual, que fiz, está vigente, já que, quando a ministra Nísia Trindade tentou revogá-lo, foi obrigada a não fazê-lo pela pressão dos parlamentares. Esse documento proíbe a assistolia fetal.
Importante dizer que essas associações pediram uma medida cautelar solicitando a revogação do manual, e o ministro Fachin, relator da ADPF à época, não a deferiu, mostrando a constitucionalidade do documento. É um documento vigente que não está sendo obedecido. Em seu voto da liminar, o ministro Barroso determinou que órgãos públicos da saúde não podem dificultar a realização do aborto legal.
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Mas não há nenhum óbice à realização do aborto com excludente de punibilidade – não se deve usar o termo “aborto legal”, pois ele não existe juridicamente – no Brasil. Pelo contrário, o país deveria ao menos exigir registros de ocorrência para casos de estupro, para que se possa investigar o suposto crime, prender estupradores e também evitar abortos baseados em relatos falsos. O Brasil não tem qualquer limite de idade gestacional para a realização de aborto, diferentemente de outros países do mundo onde ele é liberado. E, ao contrário do que os grupos defensores do aborto querem fazer crer, qualquer maternidade no Brasil pode realizar abortos.
Em nossa opinião, o aborto no Brasil é fácil até demais de ser realizado. Sem contar que se instituiu que, no Brasil, o aborto com excludente de punibilidade nos casos de estupro e anencefalia é um direito – mas isso não está previsto na legislação. Código Penal não confere direitos. Não ser punível não é sinônimo de ser direito.
Quanto ao voto da ADPF 1.207, trata-se de seu voto mais longo e no qual a resposta do STF veio de forma rápida, pelo risco que colocaria à saúde pública. Rapidamente, os outros ministros seguiram a divergência do ministro Gilmar Mendes e derrubaram a cautelar. A ADPF foi proposta pelo onipresente PSOL e outros, pedindo que o STF permitisse que a enfermagem também pudesse realizar abortos, já que o Código Penal só autoriza médicos a realizá-los. Seria um completo absurdo. Como profissionais que não têm capacitação técnica para tratar complicações de um procedimento tão perigoso – que algumas vezes inclusive provoca a morte da paciente, mesmo quando realizado em hospitais, e que tem taxa de mortalidade materna maior que a já alta do Brasil – poderiam realizá-lo? Além de ser uma afronta à Lei 12.842, que disciplina o exercício da medicina.
Barroso sustenta em seu voto que, em um cenário de vazio assistencial, limitar o espectro de profissionais que podem atuar no cuidado dessas meninas e mulheres e realizar abortos contribui para que seus direitos sejam violados. Mas não há vazio assistencial algum. Qualquer maternidade está apta a realizar aborto, e imaginar que um procedimento com os riscos que tem o aborto possa ser feito sem a presença de um médico – que é o único apto a tratar complicações que podem surgir imediatamente e levar à morte rapidamente – seria de uma irresponsabilidade ímpar. Por não ser o ex-ministro da área da saúde, certamente ele foi levado equivocadamente a crer que o aborto é algo simples e sem risco, como a militância apregoa. Felizmente, os outros ministros impediram isso.
O ministro Barroso também defende a abstenção, por parte de órgãos públicos de saúde, de criar óbices não previstos em lei para a realização de abortos lícitos, especialmente quanto à restrição da idade gestacional e à exigência de registro de ocorrência policial. Porém, o limite de idade gestacional foi criado pelo governo do PT, em manual de 2012, na gestão Dilma Rousseff. O limite de 22 semanas existe porque o bebê é viável a partir dessa idade gestacional, podendo sobreviver fora do útero. Esse limite se manteve em todos os outros governos. Não se diz que a gravidez não pode ser interrompida – apenas que não se deve matar o bebê antes.
Nesses termos, o primeiro autor deste artigo é o relator da resolução do CFM que proíbe a assistolia fetal para matar bebês acima de 22 semanas – método bárbaro e cruel – e que Barroso cita em seu voto, mencionando a suspensão da resolução pelo ministro Alexandre de Moraes. Quanto à exigência de ocorrência policial, há muito não é exigida. Mas deveria ser!
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Para comprovar a omissão do Estado, o voto menciona que, entre 2010 e 2019, foram registrados, em média, 1.589 abortos por razões médicas e legais por ano no Brasil – um número pequeno quando considerada a população em idade fértil do país e o número anual de estupros. Também aponta que, a cada sete pessoas que fizeram o procedimento, uma precisou viajar para acessá-lo. Ou seja, essa tese entende que qualquer estupro se transforma em gravidez. Parece desconhecer que a atual legislação compreende agressões sexuais a homens e abrange diversas tipificações em que a gravidez é impossível, como, por exemplo, um homem penetrar uma mulher com o dedo ou até mesmo apalpar coxas com lascívia – e muitas outras formas incompatíveis com gravidez. Também parece esquecer que, tão logo uma mulher é atendida em serviços de saúde após violência sexual, lhe é fornecida contracepção pós-coito, que tem alta taxa de eficácia em evitar gravidez. Pior: faz crer que uma viagem a cada sete é muito. Como se fosse possível haver uma maternidade em cada rincão do Brasil – único local em que há segurança necessária para se realizar o aborto. Ou acham que a mulher pobre dos rincões do Brasil merece correr risco de morte?
O voto cita ainda a posição da ministra da Saúde Nísia Trindade sobre a suposta inadequação da Nota Técnica Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento. Inadequada, dizem, mas nem ela nem o atual ministro revogaram ou fizeram outro documento. Está vigente – e não está sendo cumprida. Inclusive, o link para acessá-la foi retirado, assim como ocorreu com outros documentos publicados em nossa gestão sobre assistência ao parto, que levaram o Brasil a obter a menor mortalidade materna da história, em 2022, sob nosso comando no Ministério da Saúde.
Gravíssimo é o trecho do voto do ministro Barroso sobre o misoprostol, medicamento usado em abortos e que tem sua aquisição restrita a hospitais por portaria da Anvisa. Barroso sustenta que, embora sua segurança seja cientificamente comprovada, ele não é fornecido à maioria das pessoas gestantes que possuem o direito de recebê-lo. Esse trecho deixa claro que seria salutar a entrega do misoprostol de forma ampla, comprado em farmácia após prescrição. Seria, na prática, a liberação do aborto no Brasil. E insiste em colocar o aborto como um direito – direito esse que não está previsto na legislação brasileira.
Em resumo, nota-se que os três votos foram feitos de forma açodada, sem embasamento técnico que justifique as decisões. Certamente, esses votos serão questionados futuramente por embargos de declaração e votados pelo ministro que substituirá Barroso – e também pelo ministro Flávio Dino, que substituiu a ministra Rosa Weber, a qual também fez questão de deixar, em seus últimos minutos, um voto lamentável a favor da ADPF 442, que colocava o aborto como método contraceptivo no Brasil.
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Espero que esses votos de Barroso sobre aborto sumam do mapa e permitam que o plenário, quando julgar conveniente pautá-los, tenha um debate técnico. Urgente, neste momento, é pautar a ADPF 1.141, em que a medida cautelar do ministro Alexandre de Moraes não só permite que se matem bebês de nove meses, como ainda proíbe que os conselhos regionais de medicina fiscalizem locais onde se faz aborto, tornando, na prática, impossível saber se estão sendo feitos seguindo a legislação. É importante haver pressão para que o STF paute esse tema.
Quando se fala em argumentos técnicos, não há como não comentar estudo recente publicado em uma revista nacional de alto impacto, no qual avaliaram, por meio de um estudo de coorte retrospectivo, 28.721 abortos induzidos e 1.228.807 nascimentos em hospitais de Quebec, no Canadá, entre 2006 e 2022. Os desfechos avaliados foram hospitalização por transtorno psiquiátrico, transtorno por uso de substâncias e tentativa de suicídio, acompanhados por 17 anos. As taxas de hospitalização relacionada à saúde mental foram maiores após abortos induzidos do que em gestações (104,0 vs. 42,0 por 10 mil pessoas-ano).
O aborto apresentou maior risco para hospitalização por transtornos psiquiátricos (HR 1,81; IC 95% 1,72–1,90), transtornos por uso de substâncias (HR 2,57; IC 95% 2,41–2,75) e tentativas de suicídio (HR 2,16; IC 95% 1,91–2,43), em comparação com gestações. Esse artigo mostra, de forma irrefutável, o que já se sabia: os efeitos prejudiciais do aborto na saúde mental. E isso deve ser informado a quem deseja realizá-lo.
A militância vem tentando, por meio de ações judiciais, impedir qualquer lei que obrigue os gestores a informarem corretamente a população sobre os riscos do aborto. Nosso papel, como médicos, é informar a sociedade sobre o que vem acontecendo na temática do aborto. Os militantes favoráveis ao aborto contam com grande parte da grande mídia e da academia para propagar inverdades sobre o tema. É fundamental a mobilização da sociedade – que é, em grande parte, contra o aborto – para impedir o avanço dessa pauta no Brasil.
Raphael Câmara Medeiros Parente, médico, conselheiro federal de Medicina pelo Rio de Janeiro e relator da Resolução do CFM que proíbe assistolia fetal; Francisco Eduardo Alves, médico, é conselheiro federal de Medicina por São Paulo.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



