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Aceitar a regra de precedência da ocupação do território como base para um direito significa desconhecer que o território é apenas um dos componentes da nacio­­­nalidade e da construção nacional

Se não faltasse mais nada, agora é a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Organização dos Estados Americanos, que resolveu solicitar ao governo brasileiro a imediata paralisação do licenciamento e da construção da Usina de Belo Monte, por entender que ela ameaça os assentamentos indígenas da região. Não vou me meter a discutir se a OEA tem autoridade e legitimidade para isso, que deixo aos especialistas. Minha pergunta é outra: qual dos dois direitos deve prevalecer? O direito dos índios da região de ver seus sítios tradicionais intocados? Ou o direito de 200 milhões de brasileiros de não ter de ficar sem energia elétrica para abastecer suas residências, as fábricas e escritórios em que trabalham, suas cidades?

A situação me lembra os aeroportos norte-americanos há muito tempo. Ainda não havia acontecido o 11 de Setembro, mas os aeroportos já obrigavam o passageiro a passar por um portal para detectar objetos metálicos e a bagagem por uma máquina de raio X. Na máquina que fazia o controle, um cartaz anunciava: "De acordo com o artigo x da lei tal, as autoridades aeroportuárias, no interesse da segurança coletiva, têm o direito de solicitar que os passageiros se submetam a uma revista pessoal". E continuava na linha seguinte: de acordo com o artigo y da mesma lei, os passageiros têm o direito de se recusar a se submeter à revista pessoal". E finalizava abaixo: "de acordo com o artigo z da lei tal, as autoridades aeroportuárias têm o direito de se recusarem a embarcar os passageiros que se recusarem a se submeter à revista pessoal". Em síntese, todos os envolvidos tinham direitos, mas os direitos de alguns deles se sobrepunham aos direitos dos demais, "no interesse da segurança coletiva".

A celeuma sobre Belo Monte leva a um raciocínio parecido: uma sociedade humana é composta de um sem-número de grupos de indivíduos, que têm valores, crenças e hierarquia de interesses diferentes uns dos outros. Para alguns, a preservação das terras dos indígenas é muito mais importante do que a ampliação da oferta de energia elétrica para atender uma população que não para de crescer e uma economia que se desenvolve rapidamente; para outros (entre os quais já vou avisando que me incluo), a prioridade é diametralmente oposta. E qual é o papel do Estado? Seu papel é arbitrar esses interesses contraditórios e procurar – se possível – conciliá-los; se não forem conciliáveis, definir qual dos direitos deve ter primazia.

E por que acredito que, entre assegurar a intocabilidade das terras dos índios na região de Belo Monte ou utilizar o seu enorme potencial de geração de energia, devemos fazer a segunda coisa? Porque não acredito nem aceito que a regra de precedência de ocupação de um determinado território garanta aos descendentes remotos desses ocupantes , direito a algo que privará todos os demais do conforto e da utilidade que a energia abundante lhes garante.

Aceitar essa regra de precedência da ocupação do território como base para um direito significa desconhecer que o território é apenas um dos componentes da nacionalidade e da construção nacional. O Brasil não nasceu pronto, foi e está sendo construído penosamente passo a passo. Os ancestrais dos nossos povos indígenas foram, junto com europeus, asiáticos, africanos, os que constroem o país. Se as terras que supostamente ocuparam no passado mudaram de mãos (ou na grande maioria dos casos, passaram a ser ocupadas apenas quando chegaram novos ocupantes), isso não foi um ato de usurpação e, portanto, não lhes cabe qualquer "reparação" nem qualquer primazia sobre os direitos dos demais habitantes.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.

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