• Carregando...

Se houvesse vontade política, não seria difícil estabelecer os limites entre a ocupação pacífica e a usurpação belicosa, entre a exploração sustentável de nossa imensa base de recursos naturais e a pura e simples degradação da natureza

Meu comentário do domingo passado sobre a Usina de Belo Monte despertou reações apaixonadas, como não podia deixar de ser, dividindo-se entre a necessidade de ampliar nosso potencial hidrelétrico e o direito dos índios de manter intocadas as terras que, segundo eles e a Funai, são suas desde tempos imemoriais.

Argumentam os defensores da intocabilidade das terras indígenas que o que a determina é a Constituição Federal, que diz que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". O problema, porém, está exatamente no significado de verbo "ocupar", pois a Funai tem sido extremamente pródiga na interpretação do conceito de "terras tradicionalmente ocupadas (sic) pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente (sic), as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". Graças a essa prodigalidade e à – digamos – flexibilidade dos métodos antropológicos utilizados para atestar essa ocupação histórica, chegamos a uma situação curiosa: enquanto as populações indígenas somam pouco mais de 600 mil pessoas, representando apenas 0,2% do total brasileiro, as terras indígenas somam quase 110 milhões de hectares, ou seja, mais de cinco territórios do Paraná, 11% do território brasileiro. Isso faz, estatisticamente, de cada indígena brasileiro, desde seu primeiro dia de vida, um latifundiário, proprietário de 183 hectares.

Essas estatísticas demonstram a fragilidade dos estudos supostamente técnicos feitos por antropólogos para atestar a preexistência de populações indígenas em um território. Mas isso não é tema para uma crônica despretensiosa, e sim, quem sabe, para uma CPI.

No entanto essa leniência tem efeitos muito mais sérios: desde o bíblico "Crescei e multiplicai-vos", a espécie humana não fez outra coisa e, como corolário, expandiu-se geograficamente, ocupando novas terras para assentar populações que não paravam de crescer. Como era inevitável, em todas as épocas, essa expansão se fez aos trancos e barrancos, frequentemente com muita violência, pois eram terras sem lei nem ordem. Mas imaginar que a ocupação do território era e é um ato de banditismo é um equívoco e uma injustiça. Quem estuda a história sem ideias preconcebidas verá que nas sociedades mais recentes, como a nossa e a norte-americana, o território era imenso e a ocupação humana rarefeita. Assim, grande parte dessa ocupação de território se deu na base da acomodação recíproca, baseada na constatação de que a terra existente era suficiente para todos. Apesar da saga dos índios e da Cavalaria que o cinema americano consagrou, foi assim na Marcha para o Oeste dos norte-americanos da metade do século 19 e na implantação de sua verdadeira reforma agrária, o Homestead Act.

No Brasil da segunda metade do século 20 a ocupação do Extremo Oeste e do Noroeste do país movimentou milhões de migrantes que fugiram das dificuldades de sobrevivência nos minifúndios do Rio Grande do Sul e do declínio do café no Paraná para construir uma nova economia e ocupar, definitivamente, o território nacional. Se houvesse vontade política, não seria difícil estabelecer os limites entre a ocupação pacífica e a usurpação belicosa, entre a exploração sustentável de nossa imensa base de recursos naturais e a pura e simples degradação da natureza e entre a lei e o banditismo. Mas até hoje essa vontade não existiu.

Obviamente, esse meu argumento não agradará aos que não veem a expansão das fronteiras econômicas do país como um fenômeno social inevitável e preferem ficar reféns dessa visão retrógrada e imobilista do processo histórico em que os migrantes que buscam novos horizontes e novas oportunidades em terras distantes são rotulados e tratados como hordas de bandidos prontos a praticar genocídio, roubar terras ou destruir a natureza.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUC PR.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]