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Em parceria com Vadico, Noel Rosa compôs "Pra que mentir" (1934). Referia-se a uma jovem que não teria, ainda, o "dom de saber iludir" e nem "a malícia de toda mulher". Quase 50 anos depois (1982), Caetano Veloso retrucou Noel e Vadico com "Dom de iludir" ("Não me venha falar na malícia de toda mulher/ cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é"). Defendeu a mentira feminina como legítima diante da maior experiência masculina ("Você sabe explicar/ você sabe entender / tudo bem / você está / você é/ você faz / você quer / você tem / você diz a verdade / a verdade é seu dom de iludir / como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?"). Às vezes, as boas canções ajudam a entender a política.

É extensamente sabido que o sistema político brasileiro tem enormes problemas estruturais, talvez insolúveis no curto e médio prazos. É verdade que requer profunda e modernizadora reforma. É também verdade que os escândalos que presenciamos nos últimos anos resultam desse sistema defeituoso. No entanto, eis o dom de iludir: não se pode esquecer que esse sistema é composto por partidos, indivíduos e agrupamentos que disputam o poder e que fazem suas escolhas livremente. A formulação de Jean-Jacques Rousseau ("o homem nasce bom e a sociedade o corrompe") parece descabida, neste caso.

Em suas aparições na mídia e no horário eleitoral, o presidente Lula, acertadamente, tem apontado que as agruras que atingiram seu governo, seu partido e alguns de seus companheiros originaram-se de defeitos estruturais de um sistema político permissivo. Ele diz a verdade, mas, neste caso, "a verdade é [também] seu dom de iludir".

Embora o ambiente político seja propício à fraude; embora seja plausível que outros governos e partidos também tenham se enredado em deslizes do mesmo jaez (para dizer o mínimo), parece claro que andar por esse caminho foi, no limite, uma escolha livre de todos que por ele optaram. Poderiam tê-lo feito de outro modo, mas os atalhos pareceram irresistíveis. Se o "sistema" favorece e mesmo incentiva más práticas, como no poema de Vinicius – que inspirou muita gente boa na juventude –, ao "operário em construção" caberia dizer "não".

O presidente, como diz a canção, sabe explicar, sabe entender, tudo bem. Está, é e faz. Diz a verdade até, mas, sejamos francos, sua estratégia consiste em desvencilhar a dor da "delícia de ser o que é". Obviamente, não quer a imagem contaminada por um Congresso desgastado por aquilo que um dia ele chamou de "trezentos picaretas com anel de doutor", que, sabe-se hoje, podem estar em qualquer partido, inclusive no seu. Apenas erguer a bandeira da reforma política é ao mesmo tempo real e ilusório.

Ainda assim, consideremos parte da questão de Lula: a necessidade de reforma política está deixando de ser constatação para se tornar obviedade. Mas, se o seu discurso-estratégia não deve ser aceito sem reparos, também não pode ser descartado a priori, como tem acontecido com muitos analistas suscetíveis ao calor da guerra eleitoral. O jogo político não deveria esvaziar o conteúdo e o mérito da questão: em grande medida o sistema político e eleitoral ficou disfuncional; os que dele se beneficiaram não merecem anistia e nem sursis; devem pagar pelos erros. Mas as reformas são necessárias, sim. Minimizar isto parece pouco razoável.

Tanto o presidente e o farisaísmo devem ser julgados pelo eleitorado. Não importam as características do eleitor que temos. É o eleitorado que temos e isto o legitima. Não há como questionar sua realidade e nem pretender fazê-lo se transformar em ritmo mais rápido que a própria sociedade. Tudo o que não precisamos é de formulações elitistas, autoritárias e preconceituosas neste momento de maturação de nossa jovem democracia.

Todavia, o nível da informação precisa ser melhorado, reduzindo o sensacionalismo e oferecendo mais profunda reflexão. Precisamos menos de debates entre candidatos do que na sociedade. Mark Twain dizia a respeito de certo jornalismo ser a "arte de separar o joio do trigo e publicar o joio". Estaremos todos cometendo o mesmo erro se não soubermos separar do sistema político propostas de solução de seus problemas estruturais de seus aproveitadores. Correremos o risco de absolver aproveitadores e jogar boas questões no lixo.

Carlos Alberto de Melo é cientista político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

carlos.melo@isp.edu.br

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