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Cercear convicções e impedir que os in­­divíduos as manifestem não tornam um país menos racista ou menos homofóbico. Os preconceituosos continuarão

Em fevereiro de 2006, o historiador britânico David Irving foi condenado a três anos de prisão pela Justiça austríaca. Seu crime? Negar – ou relativizar – a existência do holocausto. Numa tentativa frustrada de se defender, Irving afirmou que tais declarações haviam sido feitas em 1989 e, desde então, refletiu sobre o assunto e "mudou de opinião".

Não é difícil imaginar os efeitos nocivos de manifestar uma opinião, ou melhor, de suscitar uma discussão como a que foi invocada por Irving: o despertar de ressentimentos adormecidos, a ressurreição de ódios passados (e alguns nem tanto), a inflamação de ferimentos minimamente cicatrizados. Todavia, como criminalizar uma convicção?

Na Áustria e em outros países europeus, negar o holocausto não é apenas algo reprovável do ponto de vista moral. Pode render até dez anos de reclusão. Contudo, o efeito é por vezes contraproducente. Trancar Irving numa cela, queimar seus livros e costurar sua boca não extingue o problema. Sem o "direito de se expressar", Irving e seus colegas negacionistas estarão ainda mais convictos de que são as "vozes da resistência", quando são apenas a síntese da ignorância com a vontade de aparecer. E na sanha de conter suas idiotices, os legisladores acabaram por conceder-lhe uma notoriedade indevida, transformando a estupidez em martírio.

Se na Europa existe certo limitar para expressar uma convicção, os Estados Unidos seguem por outra via. Recentemente, por oito votos a um, a Suprema Corte americana resguardou o direito de uma seita Batista de propagar mensagens um tanto exóticas, entre eles a de que os atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001 foram uma resposta de Deus ao homossexualismo.Os líderes da seita acreditam que as mortes dos soldados americanos no Afeganistão e no Iraque são verdadeiros bálsamos divinos, a mão de Deus a castigar os ímpios. Os asseclas atravessam o país propagando suas "verdades" e, quando se deparam com o funeral de algum militar abatido na guerra, lá estão eles a agradecer a Deus.

Por mais que o ato da Westboro Baptist Church seja repulsiva e ofenda profundamente os familiares das vítimas dos conflitos, os Estados Unidos entendem que não têm o direito de cercear uma opinião. As pessoas por lá têm o sagrado direito de propalar absurdos, sem que o Estado mova uma palha para impedi-las.

No Brasil, o debate sobre os eventuais limites da liberdade de expressão ainda é capenga e carregado de ideologismo. Voltou à tona com as declarações do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ). A esta altura, é trabalho dispensável relembrar os ditos e desditos do parlamentar. Todos ouviram com que desenvoltura ele é capaz de proferir suas convicções.

Alguns dizem que sua brutalização foi importante para desnudar um problema que, em geral, acontece de forma sorrateira, sem alarde. Bolsonaro teria feito em público aquilo que racistas e homofóbicos preferem fazer na surdina, cavando assim sua própria cova. Eis aí, a meu ver, o grande equívoco dos grupos que lutam para combater essas duas formas de discriminação. Calar Bolsonaro não representará uma vitória da causa homossexual ou do movimento negro. Trata-se apenas de um ato de expurgação que não ataca o cerne do problema. Racismo e homofobia são problemas que dizem respeito à formação moral dos indivíduos e não a uma eventual demarcação dos limites da verbalização de opiniões.

Cercear convicções e impedir que os indivíduos as manifestem não tornam um país menos racista ou menos homofóbico. Os preconceituosos continuarão, discretamente, preterindo negros nos processos de seleção de suas empresas; intimamente, continuarão a acreditar que homossexualidade é uma doença, cuja causa pode ser a falta de uma educação rígida.

Com a língua solta, Bolsonaro – esse legítimo produto da democracia (digo isso sem qualquer ironia) – continuará a ser mais um deputado em busca de microfones para obter dividendos eleitorais. Com amarras, ele se torna mártir da liberdade de expressão: custo excessivamente alto a ser pago a alguém que talvez não mereça tal deferência.

Bolsonaro não é o outro lado de nenhum debate. O deputado é, ao contrário, a negação do debate, é a caricaturização do problema que se propõe a debater. As reações enfurecidas contra sua verborragia já eram esperadas por ele. Fazem parte do espetáculo que ele pretende encenar.

Elton Frederick é especialista em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. E-mail: eltonfrederick@gmail.com

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