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No final do século XIX, vozes intelectuais na Europa levantaram-se contra a injustiça sofrida por Alfred Dreyfus, Capitão da artilharia francesa, entre elas a do brasileiro exilado na Inglaterra, Rui Barbosa, a Águia de Haia, conhecido internacionalmente pelo seu saber jurídico e pela paz. Somou-se a essas vozes, o manifesto J’accuse…! (Eu acuso), escrito por Émile Zola, foi publicado no jornal L’Aurore em 13 de janeiro de 1898 como uma carta aberta ao presidente da República Francesa, Félix Faure. Nele, Zola expõe o “abominável caso Dreyfus”, que qualificou como “o supremo golpe contra qualquer verdade e qualquer justiça”. Seu brado denunciava a condenação de um inocente, o capitão Dreyfus, ao tempo em que revelava a complacência institucional que permitiu a absolvição do verdadeiro culpado, Esterhazy.
Na carta, Zola estrutura sua acusação em torno de três eixos: as “investigações delirantes”, a “superficialidade com que o processo foi tratado” e o sacrifício da justiça em nome de um “preconceito corporativista”. Identifica como “criador diabólico do erro judicial” a “figura nebulosa” do comandante du Paty de Clam, responsável por conduzir uma investigação a partir de “intrigas romanescas” que culminaram na condenação de Dreyfus por um Conselho de Guerra amparado em um documento secreto. Zola não apenas negou a existência dessa suposta prova como a qualificou como uma mentira “odiosa e cínica”, disseminada por aqueles que incendiavam a França, “fazendo calar as bocas” e “confundindo os corações”.
Relata ainda que três generais tiveram ciência da inocência de Dreyfus e da culpa de Esterhazy, mas optaram por ocultar as provas para evitar que o Ministério da Guerra afundasse no “descrédito”. Observa que a absolvição de Esterhazy pelo segundo Conselho de Guerra configurou um crime perpetrado sob o pretexto da disciplina militar, como se a hierarquia consistisse em obstáculo intransponível para correção do erro. Denuncia que o coronel Picquart, ao identificar o envolvimento de Esterhazy, foi afastado por seus superiores, ridicularizado e punido.
Em oito frases iniciadas pelo verbo “acuso”, Zola articula uma sequência de acusações, apontando os crimes e ilegalidades cometidos por oficiais militares, peritos em grafologia, membros dos dois Conselhos de Guerra e do Ministério da Guerra. Suas acusações versam, entre outros pontos, sobre a “investigação criminosa” conduzida em um “inquérito da mais monstruosa parcialidade”, responsável por levar ao erro judicial; o ocultamento de “provas indubitáveis da inocência de Dreyfus”; o corporativismo que transformou o Ministério da Guerra em uma “arca santa inatacável”; a “campanha abominável” destinada a “manipular a opinião pública”; e a condenação de um homem com base em um “documento secreto”. No final, Zola chama atenção para o fato de que conhece a lei de imprensa que pune os delitos de difamação e que, se o levarem ao tribunal do júri, o inquérito deve se dar “à luz do dia”.
Tal como Zola expôs a seleção de um inimigo público ancorada na disposição estatal de relativizar garantias em nome de uma suposta defesa da ordem democrática, o processo que envolve Bolsonaro revela mecanismos similares de excepcionalidade
Um século depois, na Terra de Santa Cruz, outro capitão torna-se o centro de um debate que põe à prova as instituições. Jair Bolsonaro, ex-presidente da República, foi condenado a 27 anos e 3 meses de reclusão por supostos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe e organização criminosa armada.
Porém, a prova apresentada nos autos não satisfez com igual plenitude as consciências da Primeira Turma do STF. Em voto vencido, o ministro Luiz Fux demonstra que o réu deveria ser absolvido. Amparado em fundamentos jurídicos sólidos, aponta que o STF violou o princípio do juiz natural ao julgar acusados sem competência constitucional para tanto; feriu a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa ao permitir a juntada de cerca de 70 terabytes de dados e 255 milhões de mensagens de áudio e vídeo – um verdadeiro data dump, impossível de ser analisado pela defesa; desconsiderou o iter criminis, punindo meros atos de cogitação e preparação; e desrespeitou o princípio da responsabilidade penal subjetiva ao não individualizar as condutas.
A prisão preventiva veio a galope, embora Bolsonaro já estivesse em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica e sob forte vigilância policial ininterrupta. Em 22 de novembro de 2025, o ministro Alexandre de Moraes ordenou sua prisão cautelar com base na convocação feita pelo senador Flávio Bolsonaro, em 21 de novembro, para uma vigília a ser realizada no dia seguinte, nas imediações do condomínio onde o ex-presidente reside. Esse fato foi interpretado como “repetição do modus operandi da organização criminosa”, um ato que “incita o desrespeito ao texto constitucional, à decisão judicial e às próprias instituições”, revelando que “o desrespeito à Constituição Federal, à Democracia e ao Poder Judiciário permanece por parte da organização criminosa”.
O ministro acrescenta que os réus Alexandre Ramagem, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro (jovens, saudáveis e livres) teriam utilizado uma suposta “estratégia de evasão do território nacional”, o que reforçaria o risco de fuga de Bolsonaro (idoso, com saúde altamente debilitada e vigiado 24 horas pela Polícia Federal).
Os fundamentos para a decretação da prisão preventiva não resistem a uma leitura constitucional. A convocação para a vigília – manifestação pacífica – está amparada pelo direito fundamental de reunião. Considerar indício de fuga o convite ou a própria reunião também significa violar a liberdade de culto e de crença, além de caracterizar preconceito religioso. Além disso, a suposta tentativa de fuga atribuída a terceiros não pode justificar a prisão de quem não praticou qualquer ato concreto nesse sentido.
Na decisão de 17 páginas, há apenas uma referência passageira, em um parágrafo, à violação do equipamento de monitoramento eletrônico às 0h08 do dia 22 de novembro de 2025. Afirma-se que tal fato revelaria a “intenção do condenado de romper a tornozeleira eletrônica para garantir êxito em sua fuga, facilitada pela confusão causada pela manifestação convocada por seu filho”. A narrativa, contudo, não resiste à prova dos fatos: o convite para a vigília foi feito em 21 de novembro para ocorrer somente no dia seguinte, 22, a partir das 19 horas. Não é plausível que alguém tentasse romper a tornozeleira quase vinte horas antes da alegada fuga, em um momento dissociado do evento apontado como facilitador. Ressalta-se que Bolsonaro, além de monitorado eletronicamente, encontrava-se sob vigilância policial constante, é idoso, possui saúde debilitada e, como posteriormente verificado, teria agido durante um episódio de alucinação provocado por potente associação de medicamentos. A tentativa de extrair desse quadro uma intenção de fuga é incompatível com a racionalidade que deve reger decisões judiciais que alcancem a liberdade dos indivíduos em um Estado de Direito.
Aliás, é difícil exigir estabilidade emocional de qualquer pessoa submetida a circunstâncias extremas. O uso de medicamentos como pregabalina e sertralina, somado ao histórico recente – tentativa de homicídio, anos de perseguição política, acusações absurdas de ter “matado 700 mil pessoas” na pandemia, filhos e aliados perseguidos por opinião política, além de uma pena que, dadas a idade e a saúde debilitada, se aproxima de uma sentença de morte e foi estabelecida em um processo com inúmeras ilegalidades e sem o direito humano ao duplo grau de jurisdição – compõe um cenário devastador. Soma-se a isso a prisão domiciliar, a tornozeleira eletrônica e a vigilância estatal permanente. É compreensível que alguém nessas condições desenvolva episódios de alucinação, como efetivamente ocorreu, levando-o a supor que o case poderia conter algum dispositivo de escuta. Esse conjunto de fatores não autoriza a decretação de prisão preventiva; ao contrário, exigiria cuidados médicos imediatos.
O paralelismo entre os casos descritos é inevitável. Tal como Zola expôs a seleção de um inimigo público ancorada na disposição estatal de relativizar garantias em nome de uma suposta defesa da ordem democrática, o processo que envolve Bolsonaro revela mecanismos similares de excepcionalidade. No final do século XIX, um documento secreto e a recusa institucional em reconhecer o grave erro judicial bastaram para arruinar a vida de um inocente; no Brasil contemporâneo, julgamentos politizados transformam um convite de vigília em um ato criminoso e a própria vigília, uma reunião pacífica (como de fato foi), em manifestação ilícita típica do “modus operandi da organização criminosa”; episódio pontual de alucinação – que consiste na prova cabal de tortura – em indício de fuga, mesmo com vigilância estatal; atos de terceiros em responsabilidade penal alheia. A decisão negligencia direitos humanos, especialmente os de um idoso em condição de saúde precária e em situação de cárcere.
Mas o horror não termina aí. No Brasil contemporâneo, o documento se trata de uma suposta minuta de golpe que não foi reconhecida como tal sequer pelo próprio delator e o grave erro judicial, se é que podemos assim qualificar, não arruína a vida de apenas um inocente, o que já seria inconcebível, mas de milhares de inocentes e de seus familiares. Aqui, podemos relembrar alguns: Clériston, que faleceu na prisão; Felipe Martins, que mofou na solitária; Débora do batom, que ousou escrever a frase dita por um então ministro do STF em uma estátua; Cristiane da Bíblia, que buscou abrigo das bombas de efeito moral e do gás no prédio do Senado; Gisele, a mãe de 7; Jean, pessoa com deficiência e em situação de rua.
O Brasil não apenas recontou seu próprio Dreyfus com palavras típicas dos excessos atuais, mas ultrapassou largamente em injustiça e crueldade o paralelo de impressionante semelhança. Acrescenta-se à tragédia brasileira que arruinou a vida de milhares de apoiadores de Bolsonaro as prisões de General Heleno, General Paulo Sérgio e Almirante Garnier, Oficiais respeitados, referências de carreiras impecáveis após décadas de trabalho e do grau hierárquico mais alto de suas Forças, assim como Anderson Torres, Delegado de Polícia Federal. Ressalta-se que tais prisões decorreram da certificação do trânsito em julgado de sentença da qual ainda havia prazo para recurso de embargos infringentes.
Rui Barbosa, ao escrever sobre o caso Dreyfus, afirmou haver uma tendência francesa ou latina de se condenar por impressões e antecipar as sentenças, destacando que na Inglaterra a forma inquisitória que se deu na França ao julgamento seria impossível e que “nenhum país necessita mais de lições como esta do que o Brasil destes dias”. Suas críticas nunca foram tão atuais.
Zola e Rui Barbosa afligiram-se diante do flagelo da Justiça imposto pelo estamento militar de sua época. E nós, os brasileiros, devemos lamentar ou aplaudir o remake piorado do caso Dreyfus? Assim como Zola clamou diante das injustiças, concluo: “Essa verdade, essa justiça, que tão apaixonadamente desejamos, que aflição vê-las assim esbofeteadas, mais desprezadas e mais obscurecidas!”
Bianca Cobucci Rosière é defensora pública do Distrito Federal.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



