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O Brasil tem um ano atípico em 2014. Dentre outras extemporaneidades, como a Copa do Mundo e as eleições de outubro, a sombra do cinquentenário do golpe militar de 1964 torna-se cada vez maior no debate, muitas vezes acalorado, que se trava em diversos círculos da sociedade nacional, principalmente na imprensa e na academia. Séries televisas, reportagens especiais nos periódicos, livros, depoimentos inéditos sobre o período de 1964 a 1985 evidenciam que, apesar de os militares terem saído do Poder Executivo há 29 anos, a transição para um Brasil democrático ainda se encontra em pleno movimento. Aliás, podemos afirmar que um dos problemas fundamentais de nosso país, com seríssimas ressonâncias nos acontecimentos que se desfraldaram posteriormente, foram justamente as transições.

No fim do século 19, a grande questão da sociedade nacional era a abolição da escravatura. Considerando que em nossos portos foram desembarcados mais de 4 milhões de africanos entre 1551 e 1860 – o equivalente a 40% do total de africanos que foram trazidos para toda a América no mesmo período –, as oposições levantadas pelas classes senhoriais brasileiras à libertação desse contingente de escravos diretos, acrescidas pela miscigenação ocorrida no Brasil, tornavam o tema deveras espinhoso.

Uma vez assinada a abolição, a transição de uma sociedade escravocrata a uma sociedade efetivamente capitalista foi objeto de controle por parte de nossas elites econômicas e políticas, pois, com vistas a um projeto de branqueamento social, o negro foi perdendo espaço nas fazendas e nas cidades para a mão de obra europeia, preferida pelas famílias e leis brasileiras, como demonstra a tese O trabalho do negro na cidade de São Paulo pós-escravidão – 1912/1920, de Ramatis Jacino, apresentada na FFLCH/USP.

Dois dados dessa transição incompleta do negro à sociedade livre nos ajudam a pensar: entre 2011 e 2012, os negros receberam, em média, um salário 36% menor que os não negros nas regiões metropolitanas brasileiras, segundo o Dieese; ao passo que 61% das vidas ceifadas pela Polícia Militar de São Paulo entre 2009 e 2011 eram de negros, o triplo em relação às vítimas brancas, conforme pesquisa da Universidade Federal de São Carlos.

O presente quadro calamitoso da violência na sociedade brasileira coloca em campos opostos criminosos cada vez mais inescrupulosos, combatidos por forças policiais que se valem indiscriminadamente do uso da força excessiva como instrumento de ação, atingindo inocentes, invariavelmente, como no caso da faxineira carioca Cláudia Silva Ferreira, coincidentemente negra. Essa truculência policial remete aos tempos ditatoriais do Brasil, quando muitas das abomináveis práticas militares, como misteriosas mortes de suspeitos – não sabemos exatamente de que – aconteciam em ambientes policiais sob o pretexto de resistência à prisão por parte do acusado.

Em agosto de 1979, quando assinada a Lei da Anistia, momento em que se deveria passar a limpo os crimes cometidos por todos naquele espaço de 15 anos, iniciava-se novamente uma transição social apoiada em bases débeis, pois a repressão militar continuava firme sobre clérigos, estudantes, sindicatos, entidades da sociedade civil (como a OAB) e sobre o próprio Congresso bipartidário, como bem lembrou Marcelo Rubens Paiva em sua coluna de 22 de março no jornal O Estado de S. Paulo. O resultado desse conturbando cenário – a anistia ampla, geral e irrestrita – foi, a exemplo da Lei Áurea, uma legislação controlada pelos grupos dominantes do período, sobretudo os militares, cujo foco era dissuadir a sociedade brasileira da busca pelos culpados das atrocidades cometidas entre o governo Castello Branco e Ernesto Geisel.

As controvérsias em relação ao papel da Comissão Nacional da Verdade, bem como o intenso debate sobre as cotas para negros nas universidades e órgãos públicos brasileiros, expõem os dramas de uma sociedade que não completou seus processos transitórios. Tanto as cotas raciais quanto a apuração dos crimes cometidos na ditadura são imperativos ao processo de amadurecimento social brasileiro e, olvidando essas questões, apenas colocamos mais óbices à nossa ascensão ao rol dos países com sociedades democráticas e justas.

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