Traulitada histórica: as eleições intermediárias nos EUA costumam corrigir exageros ocorridos no pleito presidencial anterior, mas desta vez o eleitorado foi além e aplicou um tremendo safanão corretivo no vitorioso de 2004. O ocupante da Casa Branca não foi advertido apenas no tocante à agenda política, mas no núcleo central da sua personalidade e do modelo de governar: a onipotência e a arrogância.
Analistas americanos, visivelmente conservadores, tentam amenizar a derrota de Bush alegando que muitos democratas eleitos para as duas casas do Congresso e governos estaduais não são efetivamente liberais (isto é, progressistas), são de direita. É verdade: o bipartidarismo americano tem nuances históricas que o convertem numa espécie de tetrapartidarismo atenuado. Como, aliás, em qualquer parte do mundo democrático onde os partidos não são monolíticos, mas federações de alas e facções. Qualquer que seja a leitura dos resultados, é impossível ignorar que mancha vermelha republicana foi substituída pela onda azul democrata.
Bush é autoritário, fundamentalista e fanático tanto no sentido político como moral. Segue uma cartilha que em alguns aspectos o aproxima de um fascismo mitigado apenas pela aceitação dos procedimentos eleitorais. Sob o pretexto da luta contra o terrorismo, adoraria converter o regime americano num estado policial. Bush parte do princípio de que há uma guerra mundial em curso e tal circunstância exige comportamentos de emergência.
Bush também não gosta da imprensa. Como todos os autoritários e autocratas, recusa-se a enxergar a diversidade de opiniões e prefere considerar jornais e jornalistas como farinha do mesmo saco: são todos liberais, fracos, agnósticos, decadentes, antipatriotas.
Mas George W. Bush jamais ousaria ir a um comício ou subir num palanque para manifestar-se genericamente contra a imprensa, mesmo que ela lhe pareça articulada numa conspiração para desacreditá-lo, mesmo que os jornalões tradicionais contestem o seu ideário, a retórica primária ou sua augusta pessoa.
Quando venceu em 2004, Bush certamente teve ganas de vingar-se dos "formadores de opinião" liberais que não estavam do seu lado. Reprimiu-se, seria massacrado pelos jornalistas na entrevista coletiva dos dias seguintes. Nos EUA as entrevistas coletivas são regulares, são instituições, fazem parte da rotina democrática, e Bush sabe que, ao submeter-se aos jornalistas, não lhes faz um favor nem lhe passa pela cabeça a hipótese de um solilóquio, sem direito a réplicas.
Os jornalistas americanos dirigem-se a Bush com todo o respeito, ele é "Mister President", não obstante, o encostam à parede com perguntas duras, incisivas e, sobretudo, insistentes quando a resposta parece trololó. Bush, o arbitrário e cesarista, não ousaria fazer carga contra a imprensa mesmo que estivesse enrolado pelos companheiros aloprados. Nem sugeriria aos jornalistas próximos à sua entourage para iniciar uma cruzada contra o "complô da mídia" e, pela intimidação, impedir que a imprensa acompanhasse livremente as investigações contra o partido do governo.
E se o seu infalível FBI, num acesso tropicalista, convocasse repórteres para depor num processo administrativo interno ou inadvertidamente tentasse quebrar o sigilo telefônico de um jornal, daria um jeito na primeira ocasião para pedir desculpas públicas.
Apesar do diploma de uma prestigiosa universidade, Bush é um primitivo. Mas não ignora os ritos. Tem compromissos com os ritos. Sabe que o mais fanático dos seguidores não o perdoaria se desrespeitasse os ritos. Desconfiômetro e mancômetro são palavras sem equivalentes no inglês. Mas Bush sabe vagamente o que significam. Se não ele, os intelectuais que o assessoram.