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"É ou não é piada de salão? Se acham que não é, então não conto não!"

O vencedor do desfile das Escolas de Samba no Rio de Janeiro foi Hugo Chávez e a Unidos de Vila Isabel incorporou mais uma faceta à pregação política latino-americana do condottiere venezuelano. Dizem as más línguas que o próximo investimento do coronel Chávez é patrocinar o Flamengo ou o Corinthians ou disputar a presidência do Vasco com Eurico Miranda. Esse será o teste definitivo para a sobrevivência do bolivarismo: depois do carnaval, o futebol brasileiro.

O patrocínio político de escolas de samba não é um acontecimento tão insólito como parece à primeira vista pois o carnaval, no passado, foi uma caixa de ressonância importante para expressar o sentimento da população. Numa época de comunicações rarefeitas e lentas, era o momento certo para desabafar as mágoas e as frustrações coletivas e a população cantava para protestar contra a falta d’água ("Tomara que chova três dias sem parar ... a minha grande mágoa é que lá em casa não tem água nem pra se lavar!") ou para denunciar o favoritismo no serviço público ("Maria Candelária é alta funcionária, saltou de pára-quedas, caiu na letra O,O,Ó"). Para os barnabés desacostumados com altos salários, é bom lembrar que a "letra O" era o nível mais alto do funcionalismo público e "O de Penacho" o sonho inatingível de todo burocrata que se prezasse, embora acessível apenas aos que tivessem padrinhos e pistolões insuperáveis.

Com o tempo e a modernização do país, o carnaval perdeu esse caráter e iniciou sua trajetória no mundo do entertainment para desespero dos puristas que vêem nos megaespetáculos a negação mais absoluta da herança de Donga, Pixinguinha e João da Bahiana. Financiado por quem? Pela economia subterrânea de bicheiros cariocas e paulistas preocupados em adquirir um certo brilho social e em alavancar seu cacife político num ambiente dominado pela malandragem e esperteza de alguns e marcado pela passividade complacente de muitos em relação ao crime e à contravenção. Saíram de cena os bicheiros, entraram as empresas a encomendar enredos para glorificar produtos de maneira oblíqua e disfarçada e políticos regionais para, supostamente, enaltecer as belezas naturais de seus estados, discretamente confiantes de que os espectadores se lembrem de quem governa aqueles lugares paradisíacos. Às vezes, o assunto foge ao controle e daí o pobre Giuseppe Garibaldi paga seus pecados como personagem postiço de um enredo sobre Santa Catarina simplesmente por ter amado a valente barriga-verde Anita.

Se o entertainment matou o verdadeiro carnaval como querem os puristas, é inegável que o transformou em um fenômeno econômico e organizacional de grandes proporções e em alguns aspectos de alto nível de sofisticação. O carnaval responde, atualmente por quase 100 mil empregos permanentes no Brasil inteiro e várias centenas de milhares de postos temporários de trabalho. As escolas de samba cariocas e paulistas, os blocos e trios elétricos nordestinos, os "Bois de Parintins" e outros carnavalescos no Brasil todo desenvolveram o que os administradores gostam de chamar de "business models", modelos de negócios altamente eficazes, vendendo participações na folia com o fornecimento de abadás e de fantasias para turistas e cidadãos comuns felizes em participar de uma experiência inesquecível, arranjando patrocínios comerciais , explorando CDs e DVDs e promovendo ensaios pagos. Os impactos sobre a economia são consideráveis pois, se os números forem confiáveis, centenas de milhares de turistas nacionais e estrangeiros participaram das festas e dos desfiles nas grandes cidades, lotando hotéis, restaurantes e roteiros ao lado de milhões de habitantes locais.

No entanto, o que me deixa mais encantado é o fenômeno organizacional do carnaval. É uma sucessão de prodígios. Em um país em que as pessoas são cronicamente impontuais, as escolas desfilam com milhares de participantes cantando, dançando e evoluindo de maneira harmônica para cumprir o roteiro todo exatamente no tempo disponível, nem um minuto a mais, sob pena de perder pontos. No país-sede da improvisação e do quebra-galho compulsivos, os carros alegóricos se superam a cada ano, despejando fogo pelas ventas de dragões, cuspindo águas que volteiam com a graça das fontes do jardins do Tivoli, fazendo voar as pessoas em guindastes que baixam e erguem os braços com precisão, só que sem usar motores de qualquer tipo. E no país em que a contestação da autoridade é uma norma bem estabelecida, doutores, bem nascidos e fidalgos obedecem humildemente às ordens dos "dirigentes" das escolas que ordenam que eles cantem mais alto, dancem com mais entusiasmo e se empenhem pela vitória da escola. Os mesmos dirigentes que, na quinta-feira seguinte estarão trabalhando para os fidalgos, os doutores e os bem-nascidos. Não deixa de ser a reedição moderna do carnaval romano em que os patrões serviam os escravos durante três dias no ano.

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