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 | Tânia Rêgo/Agência Brasil
| Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Prezado Fernando Henrique Cardoso,

O senhor certamente não se lembra de mim. Conhecemo-nos fugazmente em um restaurante paulistano há alguns anos. O senhor jantava com a sua família e eu, com a minha. Incontido pela curiosidade que a sua presença trazia ao ambiente, dirigi-me constrangido até a sua mesa para pedir uma fotografia. Para minha surpresa, o senhor se levantou de imediato e, de forma muito simpática, atendeu prontamente a minha solicitação. Logo imaginei que, escamoteado durante anos pelo seu próprio partido desde que voltara à planície, não poderia recusar as raras cenas explícitas de tietagem. Estávamos, afinal, em 31 de janeiro de 2013. O país vivia o auge do lulismo.

Mas a nossa relação nem sempre foi de pura admiração. Eu fui um daqueles jovens que, no início dos anos 2000, cansaram de gritar “Fora, FHC” e “Fora, FMI”. Como era de se esperar de um menino da minha idade, ainda que não tivesse provas, eu tinha total convicção de que seu governo era o mais vendido e corrupto da história do país. Eu tinha a certeza absoluta inerente a um menino de 20 anos.

As principais reformas econômicas impostas à sociedade pelo governo são de ultraje obsceno

O tempo passou e eu amadureci. Sim, o Nelson Rodrigues tinha mesmo razão. Hoje nutro pela sua pessoa uma estima quase familiar. Afinal, além da mesma idade, meu pai era fisicamente muito parecido com o senhor, “bem mulatinho, com um pé na cozinha”, como o senhor mesmo se descreveu em 30 de maio de 1994.

Mas, além da afeição pessoal, vi surgir uma verdadeira admiração intelectual. Ainda que não tenha tido contato com a totalidade da sua obra acadêmica, penso ter lido parte relevante dela. Reconheço Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, sua conhecida tese de doutorado realizada aqui no Sul do país, como um dos clássicos da sociologia brasileira dos anos 1960. Dependência e desenvolvimento na América Latina, por sua vez, é leitura obrigatória na disciplina que leciono, além de permear toda a minha pesquisa científica.

É, portanto, na posição de alguém que lhe considera um dos grandes brasileiros do século 20 que venho, em nome de parcela expressiva da nossa sociedade, rogar-lhe a intervenção que se espera de um verdadeiro líder. A proeminência que exerce não apenas no PSDB, como em boa parte da classe política brasileira, lhe autoriza medidas incisivas: presidente, rompa de imediato com o governo e imponha seu peso simbólico na resolução da crise institucional que acomete o país.

O Brasil clama por sua intervenção junto às lideranças de seu partido. Convença-os a retirarem o tubo de oxigênio que garante a sobrevida de um corpo que já nasceu putrefeito. Caso contrário, sabemos que José, Geraldo e Aécio não o farão. Sujos até o pescoço que estão, jamais poderão abandonar o biombo atrás do qual se mimetizam.

A cleptocracia que subiu a rampa do Planalto erra, inclusive, no serviço para o qual foi incumbida. Conquanto determinadas medidas apontem no sentido correto, as principais reformas econômicas impostas à sociedade são de ultraje obsceno.

O país não suportará a afronta por muito mais tempo. O cenário de uma convulsão social já não se faz totalmente irreal. Incitada, a caserna tem começado a se pronunciar. A situação é dramática.

Presidente, não macule sua biografia por tamanha mesquinhez político-partidária. Não se apequene. O senhor já entrou para a história como um dos notáveis homens públicos deste país. Agora, tem diante de si a possibilidade de salvar o Brasil de um suicídio pátrio. Recuse o convite para o baile da Ilha Fiscal. Eles lhe estão convidando para reger a banda do Titanic.

Ivan Salomão é professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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