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O falecimento do menino Bernardo é estarrecedor por algumas peculiaridades. A enorme comoção nacional não resultou da morte violenta de uma criança. De acordo com o último estudo Mapa da Violência, em 2010 foram assassinadas no Brasil, em média, 24 crianças por dia, todas tão indefesas quanto Bernardo. Então, talvez a revolta seja decorrente das características dos suspeitos, pai (médico), madrasta (enfermeira) e amiga do casal (assistente social). Afinal, quem deveria proteger e amar uma criança mais que seus pais ou responsáveis? Quais profissionais deveriam zelar mais pela vida além dos da área da saúde? Mas pode ser outra a causa do espanto: a conscientização do menino quanto aos maus-tratos sofridos, decorrentes da negligência de seu pai. Qual criança de 11 anos tem em seu quarto um Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e conhece o seu conteúdo? Qual saberia a quem recorrer em uma situação de risco e efetivamente assim procederia? Ou, ainda, o assombro pode ser quanto ao tratamento recebido por Bernardo ao requerer proteção, uma vez que a Justiça decidiu pela manutenção do convívio entre pai e filho.

O ECA dispõe que toda criança tem o direito de ser criada e educada no seio da sua família natural, formada pelos pais e seus filhos, com vínculo biológico. E que os pais detêm o poder familiar, sendo esse um conjunto de direitos e deveres sobre seus filhos. Em casos de situação de risco, o ECA traz um rol de medidas protetivas, dentre elas a colocação da criança em uma instituição de acolhimento. Porém, o lugar seria o adequado para um menino com as características do Bernardo? Aliás, é o adequado para alguma criança? Devido ao final trágico da história de Bernardo, a decisão tomada pelo juízo local é objeto de críticas. Mas ela foi tomada em total conformidade com a norma do ECA que estabelece que a manutenção da criança à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência.

Presumo que qualquer outro juiz deste país teria dado a mesma decisão, a não ser que se atentasse para as peculiaridades do caso. Bernardo estava sendo vítima de violência moral, e esta, embora não resulte em lesão física, machuca, traumatiza e coloca a vítima em risco, tanto ou mais que a agressão física. Consta no ECA norma determinando que em todos os processos envolvendo crianças, os operadores do Direito (juiz, promotor, advogados) devem visar pelo melhor interesse delas. Será que ser criado pela sua família natural atendia ao melhor interesse do Bernardo?

É preciso que todos os profissionais que trabalham na proteção da infância sejam, de fato, capacitados para perceber que nem todos os pais desejam ou amam seus filhos. A presunção de que a família natural cumpre o melhor interesse da criança não é absoluta. Muitos pais são, sim, negligentes e até perversos, independentemente de sua instrução ou classe social. Para isso, é imprescindível atuação de psicólogos forenses com preparo e estrutura capaz de não só subsidiar a sentença, mas, principalmente, acompanhar o caso após a tomada da decisão, verificando se de fato ela foi a mais acertada. A proteção à criança deve ser integral, realizada por todos, com prioridade absoluta.

Mayta Lobo dos Santos, advogada, mestranda em Psicologia Forense, professora do Curso Luiz Carlos e membro da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR.

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