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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

No início do ano, Ming-Jin Liu e outros colaboradores chineses publicaram um artigo na revista científica Plos-ONE sobre os elementos musculares e estruturais da mão que a fazem ser tão versátil em uma quantidade incalculável de tarefas que realiza. O assunto interessa muito à robótica, que tenta copiar as grandes soluções da natureza. Em pouco tempo o artigo virou alvo de um escândalo: os pesquisadores se referiam às finalidades que “o Criador” deu à anatomia da mão. Usaram a palavra “Criador” três vezes no artigo.

A confusão foi tão grande que a revista “recolheu” o artigo, ou seja, ele foi excluído do seu catálogo. Solução drástica, usada geralmente para casos de plágio ou falsificação de dados. Os autores disseram que não passou de um erro de tradução, que se referiram à palavra “Criador”, mas que, na verdade, em inglês, o melhor termo seria “natureza”. Pediram que o artigo fosse corrigido – ação comum nas revistas científicas –, mas não foram atendidos. É sabido nos meios acadêmicos que os orientais têm uma dificuldade muito maior em redigir artigos em inglês. É comum serem aconselhados a procurar serviços profissionais de tradução. As diferenças linguísticas e culturais são muito grandes.

Até as revistas científicas, que zelam pela utópica neutralidade, têm seus preconceitos

Acreditei nos autores ao ler o artigo. De fato, eles não estão propondo um Design Inteligente (ação direta de Deus em criar novos órgãos ou espécies). Citam mecanismos clássicos de evolução e só se referem ao “Criador” para falar das finalidades da mão, não à maneira como ela surgiu.

Entretanto, na realidade não importa se foi erro de tradução ou não. O artigo discutia dados experimentais e analisava a funcionalidade da mão. A questão do “desenho” complexo não passou de mero comentário no texto, que poderia ser excluído ou substituído sem prejuízo algum ao trabalho. No centro da confusão estão duas questões mais relevantes: a extensão do direito de censura das revistas científicas e o imenso preconceito da comunidade científica em relação à mera menção a Deus por um pesquisador.

Os cientistas publicam suas pesquisas em artigos em revistas especializadas, que contam com a revisão de outros cientistas sobre o trabalho, aconselhando alterações ou até mesmo negando a publicação. As revistas têm um editor que faz o meio de campo entre autores e revisores, que trabalham anonimamente. É comum o processo todo durar até um ano. Muitos cientistas reclamam do excessivo poder dos editores e revisores em aceitar ou negar publicações e exigir alterações de modo intransigente. Até Einstein já teve seus problemas. No entanto, essa revisão é necessária para garantir a qualidade científica dos artigos e das revistas. Infelizmente, muitas vezes os limites do razoável são ultrapassados e viram censura pura.

Censura e intransigência é o que melhor descreve o ocorrido com o artigo dos chineses. A menção a um “Criador” era opção dos autores, não afetava o trabalho. Newton, Galileu e muitos outros se referiam a Deus constantemente nos seus textos. Por acaso podem ser acusados de anticientíficos? A revista também foi intransigente ao negar a simples alteração de termos solicitada pelos autores. Foram ignorados. Infelizmente até as revistas científicas, que zelam pela utópica neutralidade, têm seus preconceitos. E o preconceito religioso é um fato no mundo científico.

Alexandre Zabot, físico e doutor em Astrofísica, é professor da UFSC.
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